quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Vestibular UFC 2009.1

Prova de Língua Portuguesa – UFC – vestibular 2009.1

Machado de Assis pertence ao grupo dos que, conforme o eu lírico camoniano,
“por obras valerosas se vão da lei da morte libertando”. Linhares Filho celebra-o no poema “A Machado de Assis, morto vivo”, que embasará esta prova. Convidamos você a viajar no universo poético de Notícias de bordo. Nessa viagem, Linhares Filho é o capitão; Machado de Assis, o homenageado; você, o nosso convidado de honra. O destino? A Universidade Federal do Ceará.

A MACHADO DE ASSIS,
MORTO VIVO


01 De que maneira a fundo iremos conhecer-te,
02 se muita vez estás noutro lugar,
03 mil cabriolas a dar
04 com a manipulação freqüente de um falar
05 e dois entenderes?
06 O que propões, porém, vamos tateando,
07 e o teu pungente riso saboreando.
08 Algo fica, afinal, de tuas reticências –,
09 mesmo sem se atingir total a tua essência
10 e não obstante a previsão de Cubas –,
11 também nas duas tais colunas da opinião,
12 não só numa terceira, a dos agudos,
13 e assim o teu discurso não é vão.
14 De além dos vermes que roeram
15 as tuas frias carnes
16 sem deixar boca para rir
17 nem olhos para chorar,
18 escuta-me com a alma que restou
19 do teu grande naufrágio
20 (longe do feroz ágio e do pedágio).
21 Aqui estou para dizer-te o quanto
22 ainda te ouvimos, lemos e te amamos.
23 Ensinaste-nos que há sempre
24 uma gota da baba de Caim,
25 tanto a vontade como a ação umedecendo
26 de indivíduos, de classes ou de tribos.
27 Que por batatas uns aos outros se consomem.
28 (Quantos, qual tu sem Deus, acham que a morte é o fim!)
29 Joaquim Maria, as tuas esquivanças,
30 silêncios e trejeitos e artimanhas
31 deram-nos luz para a experiência do homem.
32 E, quanto a nado, mar, navegação,
33 embora cada um de nós manobre
34 bem a seu modo o timão,
35 para o leitor abriste uma Escola de Sagres,
36 onde muito se pode observar,
37 dos olhos de ressaca em tua Capitu
38 até os confins da Europa no seu corpo,
39 que por Bentinho, enfim, é rejeitado.
40 Fizeste de Escobar o próprio rio Cobar,
41 para em Ezequiel, homônimo do bíblico,
42 denunciar-se por fumos todo um fogo,
43 a culpa intencional da sedução de um mar...
44 E fizeste surgir a dúvida no ar.
45 Ora com humour, ora com ironia,
46 contra Leibniz puseste Schopenhauer.
47 De Laurence Sterne filtraste a sátira menipéia.
48 E o vulnerável, mestre, apanhas com mão fria.
49 Sobressai-te um vigor: a sensual latência,
50 quase sempre consciente e deletéria,
51 qual sangue a latejar por dentro de uma artéria.
52 Evidenciando aqui, ali insinuando,

53 soubeste registrar o desconforto,
54 o descontentamento e a frustração
55 da nossa humana condição
56 desde o emplasto de Brás Cubas
57 à solda da opinião.
58 E aqui ficamos tristes e inquietos
59 com as mil formas de ser da humana Dor.
60 Muito amor ainda falta e pão. Faltam mais tetos,
61 a paz pública falta e a paz interior.
62 Sentimo-nos pequenos e incompletos.


LINHARES FILHO, José. A Machado de Assis, morto vivo. In: _____________.
Notícias de bordo: poemas selecionados. Fortaleza: Edições UFC, 2008, p. 91-93.

01. Além de a Machado de Assis, em Notícias de bordo, Linhares Filho presta homenagem a outros mestres da Literatura de Língua Portuguesa. A seguir, você dispõe de versos de alguns poemas dessa obra.

Associe corretamente os versos transcritos na segunda coluna ao autor homenageado.

(1) Carlos Drummond de Andrade
(2) Miguel Torga
(3) Camões

( ) A clara voz ouvimos-te, a compor / toda a beleza ideal dos Cantos tersos, / com aspectos entre si assaz reversos. / Ardente e rico, o teu interior.
( ) Boitempos choram, uma viola chora, / e chora minha lira entristecida.
( ) Da terra a força é em ti um dom que cria / as linhas de um roteiro mais corretas. /
Dessa terra nos passas a magia / que faz sempre maiores os poetas.
( ) Tanto ensinou que amar se aprende amando, /
que além do humor, do corpo, além da rosa, / do ferro de Itabira foi pairar
Assinale a alternativa que apresenta a seqüência correta.

A) 3 – 1 – 2 – 1.
B) 3 – 3 – 2 – 1.
C) 3 – 2 – 1 – 3.
D) 2 – 1 – 2 – 3.
E) 2 – 3 – 1 – 1.

02. De acordo com a primeira estrofe do poema (versos 01-31), é correto afirmar que, na obra machadiana:

A) o uso freqüente de reticências é uma importante peça comunicativa.
B) o riso é provocado por expressões pueris, as quais são bastante recorrentes.
C) o indianismo é evidenciado pelo relato dos hábitos de tribos indígenas brasileiras.
D) os silêncios se fazem notar nas significativas páginas em branco entre as partes dos romances.
E) a sociedade brasileira é retratada de modo idealizado, pois Machado esquiva-se de um relato mais realista.

03. O verso “E fizeste surgir a dúvida no ar” (verso 44) traz à tona a temática da traição feminina, abordada num dos mais famosos romances de Machado de Assis e resumida no célebre questionamento: Capitu traiu ou não o seu marido, Bento Santiago?

Leia a afirmação a seguir e assinale a alternativa cujos termos, na ordem em que aparecem,
substituem os números, completando corretamente as informações.
A temática da traição feminina foi ainda explorada por Machado num de seus mais famosos contos:

(1). Em Portugal, (2), festejado por críticos literários do mundo inteiro como o escritor mais representativo do Realismo luso no âmbito da prosa de ficção, trabalhou com a temática em questão, no romance (3).

A) “Miss Dollar”; Miguel Torga; Vindima.
B) “A cartomante”; Eça de Queirós; O primo Basílio.
C) “Flor anônima”; José Saramago; Memorial do convento.
D) “Pai contra mãe”; Camilo Castelo Branco; Amor de perdição.
E) “Cantiga de esponsais”; Alexandre Herculano; Eurico, o presbítero.

04. Os excertos “De além dos vermes que roeram / as tuas frias carnes” (versos 14-15), “[Ensinaste-nos] Que por batatas uns aos outros se consomem” (verso 27) e “dos olhos de ressaca em tua Capitu” (verso 37) realizam intertextualidade, respectivamente, com os seguintes romances de Machado de Assis:

A) Memórias póstumas de Brás Cubas; Esaú e Jacó; Dom Casmurro.
B) Ressurreição; Dom Casmurro; Memórias póstumas de Brás Cubas.
C) Memórias póstumas de Brás Cubas; Quincas Borba; Dom Casmurro.
D) Quincas Borba; Dom Casmurro; Memórias póstumas de Brás Cubas.
E) Memórias póstumas de Brás Cubas; Memorial de Aires; Dom Casmurro.

05. O discurso machadiano caracteriza-se, em boa medida, pela ambigüidade e pela utilização do humor e da ironia: é o que nos diz o eu lírico do poema em “com a manipulação freqüente de um falar / e dois entenderes” (versos 04-05) e em “Ora com humour, ora com ironia, / contra Leibniz puseste Schopenhauer” (versos 45-46).

Analise as afirmações acerca de outras características do discurso machadiano e, em seguida,
assinale a alternativa correta.

I. O discurso machadiano caracteriza-se, também, pela freqüente utilização de apóstrofes. Há apóstrofe em “Musa consoladora, / É no teu seio amigo e sossegado / Que o poeta respira o suave sono” (“Musa Consolatrix”, Crisálidas, 1864) e em todas as vezes em que o narrador machadiano, ao longo de romances e de contos, dirige-se ao leitor.
II. O discurso machadiano caracteriza-se, também, pela utilização de outra figura de estilo: a gradação. Em “Mas a infeliz vencida / A mágoa, a dor, o ódio, / Na face envilecida / Cuspiu-lhe” (“Epitáfio do México”, Crisálidas, 1864), há gradação descendente.
III. O discurso machadiano caracteriza-se, também, pela utilização de zeugmas. Há zeugma em “Deus recebe em ouro, Satanás em papel” (Dom Casmurro, 1900) e em “Não era baile; apenas um sarau íntimo” (“Um homem célebre”, Várias histórias, 1896).

A) Apenas II é verdadeira.
B) Apenas III é verdadeira.
C) Apenas II e III são verdadeiras.
D) Apenas I e II são verdadeiras.
E) Apenas I e III são verdadeiras.
06. Com a expressão “grande naufrágio”, em “escuta-me com a alma que restou / do teu grande naufrágio” (versos 18-19), o eu lírico do poema refere-se:

A) ao malogro do último romance de Machado de Assis, Memorial de Aires (1908), motivo de seu afastamento da vida literária, pouco antes da sua morte.
B) à maneira como morreu Machado de Assis, no naufrágio do vapor Hermes, que ocorreu próximo à cidade de Macaé (RJ), em 1908.
C) à condição espiritual de Machado de Assis após o falecimento de sua companheira, Carolina (1904), com quem viveu 35 anos.
D) à morte de Machado de Assis, em 1908, de modo que a expressão “grande naufrágio” aparece no poema como uma metáfora para morte.
E) à decadência moral de Machado de Assis ao fim de sua vida, resultado do seu contato com os vícios sociais por ele denunciados ao longo de sua produção literária.

07. Assinale a alternativa cujo significado do vocábulo destacado na frase mantém-se igual ao significado do mesmo vocábulo no poema.
A) “pungente” (verso 07) – O pungente sabor do tamarindo fez-me exceder na ingestão de açúcar.
B) “vão” (verso 13) – Entre a cômoda e a parede, havia um vão onde guardava o dinheiro.
C) “ressaca” (verso 37) – Os olhos de ressaca de Maria não lhe negavam a insônia.
D) “deletéria” (verso 50) – Embora deletéria a ambiência em que vivia, não se corrompeu.
E) “emplasto” (verso 56) – Não se pode contar com essa garota para nada: é um emplasto.

08. O eu lírico do poema refere-se a Machado de Assis como morto vivo. Assinale a alternativa na qual está presente o excerto do poema que explica o porquê dessa alcunha.
A) “escuta-me com a alma que restou / do teu grande naufrágio” (versos 18-19).
B) “Aqui estou para dizer-te o quanto / ainda te ouvimos, lemos e te amamos” (versos 21-22).
C) “Sobressai-te um vigor: a sensual latência, / quase sempre consciente e deletéria, / qual sangue a latejar por dentro de uma artéria” (versos 49-51).
D) “soubeste registrar o desconforto, / o descontentamento e a frustração / da nossa humana condição” (versos 53-55).
E) “E aqui ficamos tristes e inquietos / com as mil formas de ser da humana Dor” (versos 58-59).

09. Acerca dos elementos constitutivos do verso “E o vulnerável, mestre, apanhas com mão fria” (verso 48), analise as assertivas a seguir e coloque V ou F conforme sejam verdadeiras ou falsas.

( ) “mestre” exerce função de vocativo, assim como “Joaquim Maria” (verso 29).
( ) “apanhas” tem como sujeito “tu”, que remete a “Joaquim Maria” (verso 29).
( ) “E” exerce a mesma função que em “o desconforto, / o descontentamento e a frustração / da
nossa humana condição” (versos 53-55).

Assinale a alternativa que apresenta a seqüência correta.

A) V – F – V.
B) F – V – F.
C) F – F – V.
D) V – F – F.
E) V – V – F.
10. Cada alternativa a seguir apresenta um trecho da obra Memórias póstumas de Brás Cubas. Assinale a
única em que o verbo “haver” mantém-se impessoal pelo mesmo motivo que em “Ensinaste-nos que há
sempre / uma gota da baba de Caim, / tanto a vontade como a ação umedecendo / de indivíduos, de
classes ou de tribos” (versos 23-26).
A) “Havia já dois anos que não nos víamos”.
B) “Verdade é que não houve cartas nem anúncios”.
C) “Já havia corrido a cidade toda, com umas saudades...”.
D) “O verdadeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há de ter um relógio na algibeira”.
E) “Ele, porém, houve-se com a maior delicadeza e habilidade, despedindo-se tão alegremente que me animou a perguntar-lhe se deveras me não achava doudo”.

11. Cada alternativa a seguir apresenta um trecho de Memórias póstumas de Brás Cubas em que ocorre o uso de “qual”. Assinale a única em que “qual” está empregado com a mesma função que assume em “Quantos, qual tu sem Deus, acham que a morte é o fim!” (verso 28).

A) “Qual deles: o hortelão ou o advogado?”.
B) “Cada qual prognosticava a meu respeito o que mais lhe quadrava ao sabor”.
C) “Minto: amanheceu morta; saiu da vida às escondidas, tal qual entrara”.
D) “Quem diria, há anos... Um homenzarrão! E bonito! Qual! Você não se lembra de mim”.
E) “Já prometeu a si mesmo escrever uma breve memória, na qual relate o achado do livro”.

12. Cada alternativa a seguir apresenta um trecho de Memórias póstumas de Brás Cubas em que há a presença do acento grave. Assinale a única em que o acento grave está empregado pela mesma razão por que foi usado em “desde o emplasto de Brás Cubas / à solda da opinião” (versos 56-57).

A) “Creio que prefere a anedota à reflexão”.
B) “Vejo-a assomar à porta da alcova, pálida, comovida”.
C) “Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira”.
D) “O que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar”.
E) “Fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce ‘por pirraça’”.

Trapiá, de Caio Porfírio Carneiro

Trapiá, de Caio Porfírio Carneiro
Com tipos, painéis e valores bem distintos, os contos de Caio Porfírio de Castro Carneiro espelham sua vivência na fazenda Pau Caído, interior do Ceará; em Fortaleza, cidade em que o escritor nasceu e completou sua formação; e finalmente em São Paulo, para onde se mudou em 1955.

Este rico universo de personagens regionais típicas está descrito com sutileza em Trapiá, seu livro de estréia, publicado em 1961. Um dos traços marcantes desta obra é a intertextualidade, já que a história inicia-se com o trapiá - uma árvore que logo após iria se tornar um município, onde o livro gira ao seu redor. As histórias se desenrolam, portanto, nessa pequena cidade e em seus arredores. Não há um conto intitulado “Trapiá”.

A leitura apressada do livro pode dar equivocada impressão de que se trata de contos regionais no sentido menor, pelo fato de que a matéria narrativa estaria presa a um contexto cultural específico que se propõe a retratar e de onde vai haurir a sua substância. São histórias da terra áspera, calcinada, coronéis, arrieiros, velhos solitários, gente humilde do interior, meninos com a infância sofrida. Os personagens circulam pela caatinga, pelo mata-pasto, pelo roçado. Do campo para a cidade pequena é um passo. A vida rural é retratada nesses contos com fidelidade.

As primeiras narrativas curtas de Caio têm como palco o sertão, o campo, os vilarejos, as pequenas cidades. A impressão de que os contos de Trapiá são regionais afigura-se como tal dado que a matéria narrativa incorpora ainda no texto termos e expressões típicas como “potoca’, “de vera”, “tapuru de gente’, “mucuim do inferno”, “embiocado”, “cumaru”, “canarana”, “mofumbó”, “varejão”, “pega-pinto”, ton-fraco de capote”, “neu”, “desbilotada” “maluvido”, “manga”, “baticun’, “capionga”, “cansansão”, “mode”, “cachimbeira”, “gasguito” e “pitombeira”. Embora não ocorra o abuso do uso desses termos e expressões típicas na narrativa concisa, não se repetem em cada história quando incorporados ao discurso coeso. Isso já demonstra uma tomada de consciência crítica do contista para evitar a presença do repetitivo, enfadonho, que em geral ocorre no texto de natureza regionalista.

Não importa ao contista de Trapiá a transposição da linguagem para o campo literário tal qual ela é. Nem importa retratar a ambiência onde se passa a história como se fosse fotografá-la nos mínimos detalhes. Passa longe o dado sociológico transformado em matéria literária, realidade estética, visando prevalecer o documento sobre o subjetivo. Embora enraizado em sua região de origem, fazendo dela muitas vezes a matéria-prima de sua criação literária, Caio Porfírio Carneiro nos contos de Trapiá ultrapassa os limites do regionalismo dos anos 30/40, para engajar-se em uma literatura que tem como tema o ser humano tocado de suas verdades essenciais: tristezas e dores.

A economia dos meios nos contos de Trapiá salta aos olhos como uma maneira bem particular da expressão, a se mostrar com precisão na arte implícita de forjar a história no que pretende contar. Há uma nota especial disso desde a fala dos personagens, passando pela ação que os movimenta através de sua psicologia, até as observaçõese e constatações que fazem dando uma idéia do lugar onde acontece a intriga. Tanto no fundo como na forma há sempre o uso dos meios de expressão com síntese, equilíbrio, intensidade do verbo, “vazios narrativos”, tudo isso manipulado com facilidade que torna o narrador possuidor de uma dicção muito própria no corpo do moderno conto brasileiro.

Para não cair no tempo lógico seqüenciado da narrativa, o contista recorre ao contraponto, fazendo que os quadros vividos pelos personagens exibam a história com um interesse eficaz capaz de prender o leitor do princípio ao fim. Preenche-se de interesse o drama na medida em que os personagens agem. O recurso da síntese manipulado pelo contista consegue no final imprevisível o efeito intenso.

No conto “Milho Empendoado”, por exemplo, o coronel revela à mulher apenas no desfecho que não pegou o ladrão, mas acabou com o roubo, quando mandou o suspeito vigiar as galinhas.

Em “O Pato do Lilico”, o pai não acredita que o menino tenha recebido o brinquedo de presente do homem na cidade. Em sua rusticidade estúpida, pensa revoltado que o menino havia roubado o brinquedo. De nada adiantava o choro e a insistência do filho querendo mostrar a inocência. No final, bruscamente, jogou o pato no chão e pisou com raiva, enquanto a mulher lá da cozinha dizia para o filho se calar, não fazer isso outra vez, Nosso Senhor castiga. Neste conto também se vê a paisagem sertaneja, quer no campo propriamente dito, quer no interior das casas, bem como os costumes (cavalo de talo de carnaúba), os objetos (bilros de almofada, cabresto, cangalha, grajaú), a linguagem (bichinho, socar-se, rachar de peia).

Em “O Gavião”, a raiva que o menino tem da ave que lhe roubou o canário de estimação, insistindo para que o pai a matasse, transforma-se em admiração quando entra em contato direto com ela, percebendo sua maneira de reinar na natureza com coragem e beleza. Comove o final quando a ave é abatida pelo pai e o menino sente.

Em “Candeias”, o vadio menino Rafael implica a todo instante com a Velha Candoca, mandando os companheiros sujar os panos do coradouro, chamando-a de “velha cachimbeira”. Quando retiraram do açude o menino morto, “na certa estaria deformado, inchado, sem o sorriso moleque”, a velha sente água nos olhos. Nunca ouviria mais a provocação: Velha cachimbeira!

Em “Macambira”, o velho Firmo com o olhar perdido no poente, conversa em silêncio ao perscrutar o tempo, o vento e sua poeira. Vê a criação se esvaindo sem a ração, e ele resistindo à seca, à solidão, não atendendo ao pedido dos filhos em São Paulo para deixar suas terras, porque um homem não se dobra ao vazio de tudo, nem quando perde a mulher.

Em “Come gato” o contista entrança duas histórias aparentemente díspares: a disputa política entre coronéis e a humilhação diária do pobre Olavo, apelidado pela meninada de Come Gato – para pintar um quadro de agudo realismo. Nestes contos os diálogos se alongam, entrecortados por breves narrações.

Assim, no eixo desses contos vê-se a solidariedade inesperada latejar sentimentos e nervos em “Mata-Pasto”,“Come Gato”; o absurdo da incompreensão em “O Pato do Lilico”; a astúcia do coronel em “Milho Empendoado”; a afeição intensa da Velha Candoca em “Candeias” e o ódio revertido em amor pela ave de rapina em “O Gavião”.

Nas histórias de Trapiá, a conservar alguns elementos clássicos do realismo, com observações exatas nas cenas sobre seres e objetos da realidade imediata, a estrutura tradicional da narrativa curta fragmenta-se no lugar de ser desmembrada linearmente. A ação dos personagens que, em pequenos blocos cruzam e se entrecruzam no desenvolvimento da trama, retiram qualquer possibilidade de onisciência narrativa, da qual aflora o drama sem desprezar a ternura.

O estilo enxuto e sintético de Caio Porfírio Carneiro projeta densidade humana forçando o leitor participar da história, tornar-se cúmplice do destino dos personagens com sua feição sofrida. A intensidade que emerge do discurso feito com observações lúcidas sustenta certa atmosfera que evolui em seus ângulos críticos na medida em que a história caminha para o desfecho imprevisível. O epílogo força qualquer um pensar sobre a complexidade do mistério da existência.

Nestes contos não se vê a intenção do escritor em fixar tipos, linguagem, valores e costumes de determinada região, transpondo os elementos para o literário em seu espaço documental típico. O contista não experimenta a linguagem, embora se mostre íntimo do território humano que projeta, pouco a pouco, no texto enxuto. Não chega a forçar em algum momento as emoções do seu fundo a sustentar o drama. A cumplicidade que emerge do leitor em torno de alguns dos personagens decorre da capacidade que tem Caio Porfírio Carneiro de alcançar sentimentos verdadeiros, que são de nós humanos, com nossas permanentes comoções. A matéria desses contos não é outra senão a criatura humana nos incidentes, encontros e desencontros da existência.

Fonte: Cyro de Matos, contista, poeta, cronista, ensaísta e autor de livros infanto-juvenis.
Endereço: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/t/trapia

O Mundo de Flora, de Angela Gutiérrez

O mundo de Flora, de Angela Gutiérrez
O Mundo de Flora é o romance de estréia de Angela Gutiérrez, escrito em 1987. É um casamento feliz entre ficção e memória. Pode-se afirmar que é resultado do caráter polifônico da literatura pós-modernista, pois há uma variação de foco narrativo em que diferentes personagens têm voz. O romance apresenta como um de seus espaços a cidade de Fortaleza.

O aspecto estrutural é que faz de O Mundo de Flora um romance singular, de muitas influências da vanguarda européia do início do século, como o Cubismo, em que é valorizada a superposição de planos e a colagem. Esses elementos, porém, aparecem no texto de Angela Gutiérrez com outras perspectivas, dada a feição original dos vários narradores, da perspectiva memorialística e autobiográfica, do regionalismo, dos vários tipos de linguagem que o texto encerra, da fragmentação do enredo e do tempo da narrativa.

Diante disso, veremos como a não-linearidade do enredo tanto é proporcionada pelos vários narradores do romance, como pelos vários planos temporais que nele existem. Tais narradores alternam-se, ora cabendo a um personagem o direcionamento da narrativa, ora aparecendo outro que conduz a narração, que tanto pode ser contemporâneo do primeiro, como pertencer a um outro tempo bem distanciado, e ora um narrador ausente, em terceira pessoa, distanciado da narrativa, o que faz do tempo do romance um verdadeiro caleidoscópio de imagens e fatos, daí a superposição de planos temporais e espaciais.

O enredo, que à primeira vista parece confuso e desordenado, adquire unidade ao longo do texto, pela simplicidade e naturalidade com que os planos se sobrepõem. Tais planos, na maioria das vezes, têm individualidade própria, e aparecem sob várias formas, como pequenos contos, crônicas, letras de músicas que marcaram época, poemas populares etc. Essa independência formal, no entanto, não prejudica o entendimento, haja vista os fragmentos se amalgamarem num todo narrativo, assegurando a sua unidade, e marcando a originalidade da composição do romance em questão.

Ao lado dessa estrutura fragmentária, aparecem vários elementos que enriquecem o texto, como os hábitos e costumes de Fortaleza antiga, o que caracteriza um regionalista bem original, dado os efeitos que a autora emprega para mostrar ao leitor tais costumes.

A nostalgia e o memorialismo são aspectos presentes na obra. O romance é fragmentado. A história se passa no casarão, no sítio e na cidade.

Da perspectiva do memorialismo e da autobiografia, perceberemos que são mostrados tanto a formação do clã da protagonista, como a sua formação individual, que tanto é contada por ela mesma, como por um outro narrador, possibilitando, desta maneira, várias visões ao leitor, abrindo-lhe várias perspectivas não só de interpretação do mundo da personagem, como de visão abrangente de um período, interpretado sob vários ângulos.

Apesar de o termo Pós-Modernismo ser ainda empregado com certas reservas, queremos propor essa classificação para servir de identificação da estética do romance de Angela Gutiérrez. Domício Proença Filho, em seu livro Pós-Modernismo e Literatura, identifica vários traços que caracterizam textos sob esta denominação, como a ´intensificação do ludismo´, a ´utilização deliberada da intertextualidade´, o ´exercício da metalinguagem´, a fragmentação etc. Tais traços são característicos do romance de Angela Gutiérrez.

Pode-se afirmar que a personagem-narradora, Flora, identifica-se com o conto Cantiga de Esponsais, de Machado de Assis. O romance é o fim de Flora, a personagem narradora. Aos 33 anos, ela se despede da vida. No espelho de cabo de marfim, ela percebe o "cortejo da velhice" que se aproxima. Então, relembra a sua vida, os primeiros anos no casarão que pertenceu ao avô e ao bisavô. O mundo de livros na biblioteca e a caveira no topo da estante - que a menina jamais esquecerá, com certo espanto (seria seu primeiro contato real com a morte?). A primeira lembrança: aos três anos, sentadinha num tamborete, comendo pedaços de sapoti, "cortados em gomos e arrumados no prato como uma flor".

Flora tem cinco anos, e é com este espanto maravilhoso das crianças que vamos ler sua história, histórias - de sua família, com tantas Floras e Níveas e Brancas, que se perpetuam, em gerações - gestos, jeitos e atitudes. A caçula é magrelinha, sonhosa, de "pestanas compridas", cabelos lisos e negros e perninhas de sibite. Vamos, levados pela mãozinha de Flora, conhecendo as pessoas da família, e também - e com imensa ternura - as empregadas, feito a negra Cota e a cozinheira Maria Amélia; pedintes, vizinhos, amigos de rua e da escola, os manos, os tipos (os rabos-de-burro, por exemplo). E também curiosíssimas criaturas, como a gorducha Alaíde Vernon, "daquelas que quando se sentavam enchiam uma cadeira". Ou a galalau inglesa, miss Daisy Colbert (que vai aparecer em outro romance da escritora, Avis rara - como aquela que não cabia nos retratos...). Filó, e sua dentadura postiça, balangando na boca, rodando a saia godê, enquanto dança, para alegria de Flora. O velho Jeromo, o professor Quadrado e sua amada Micaela, o primo maluquinho, que cantava sem parar "Malica bela, tu cagaste na panela". A cidade - também ela é personagem do romance.

O Mundo de Flora convida o leitor a um passeio por uma Fortaleza que persiste no afeto, feito a velha Sé, demolida no dia em que a menina nasceu (e a catedral, que nunca se acabava de terminar). A Coluna da Hora, na praça do Ferreira, o trem apitando na estrada de ferro, no subúrbio de Matosinhos (é a Maraponga), o costume do "sereno" - ficar espiando, de fora ou da calçada, uma festa para a qual não se foi convidado. Brincadeiras infantis, cantigas de roda, jogo de bila, de pedra, passa-anel. A moda, cabelo curto, vestidos de organdi. A lagoa sangrando. Enterro de anjinhos. Música. Vela na cabaça, para encontrar o corpo do menino afogado; o partido azul e o encarnado, bumba-meu-boi, maracatu, queima de judas. "Ôi, bafo te bafo te bafo", e a zoada da mutuca.

A menina cresce, apaixona-se, se casa por amor. Perde o primeiro filho. Sofre. Mas é a renitente alegria, acompanhada pela esperança, o que sobressai da narrativa. Porque a vida se eterniza nesta frágil mágica cotidiana, que é a vida de cada um. Narrativa, como já citado, não linear, de vai-e-vem, com histórias que se cruzam e se mesclam.

A estrutura

No romance O Mundo de Flora, não há a divisão macroestrurural. Observa-se que no índice deste livro há uma divisão em grandes partes. Essa divisão em partes maiores, no entanto, é apenas um indicativo de leitura para o leitor, que poderá lê-lo da maneira que lhe for conveniente, como a própria autora observa - ´...o leitor poderá conhecê-lo de um corrido só... ou folheá-lo ao acaso...´ (p. 180).

Essas grandes unidades de divisão também não têm nenhuma função dentro da estrutura narrativa, dada a independência que cada fragmento assume. Todo o texto romanesco da autora cearense é formado por microestruturas narrativas, que proporcionam, também, uma visão fragmentária para o leitor. Cada microestrutura guarda a sua independência textual, visto que o discurso, em algumas delas, tem característica bastante diferenciadas e possibilitam panoramas bem distintos, tanto em relação à cosmovisão como em relação à vida da personagem. Desta maneira, as microestruturas só se completam quando da recriação do leitor, que recompõe todos os desenhos que lhe são apresentados.

Em O Mundo de Flora há a interpretação da realidade - e conseqüentemente a sua crítica -, demonstrando a relatividade desta interpretação, que sempre está sujeita a várias leituras, dependendo do ponto de vista em que é observada. Desta maneira, há vários narradores que direcionam a narrativa - que entram e que desaparecem do contexto narrativo -, e vários personagens que se alternam, assumindo, ora uns, ora outros, a função de protagonista do enredo do romance.

O que vai predomina no texto de Angela Gutiérrez é a relatividade da cosmovisão. O questionamento do mundo, neste romance, aparece mais enriquecido, visto a percepção localizar-se em muitos pontos, o que possibilita tantas visões quanto o número de referentes existente, daí a relatividade. O romance de Angela Gutiérrez é uma tentativa de refazer esse mundo estilhaçado, que a modernidade proporcionou, e que a pós-modernidade tenta reconstruir, unindo esses vários fragmentos; não mostra somente o mundo partido e fragmentário dos personagens, mas mostra como esse mundo pode ser reconstruído a partir desses fragmentos. O procedimento para a estruturação do livro - a fragmentação, a colagem, a montagem, como já visto, fazendo dele uma escrita caleidoscópica - tem uma relação profunda com um dos objetivos de toda narração: a história da vida das personagens, que, neste caso, se elabora através de lembranças que chegam, em muitas ocasiões, sem um nexo temporal ou espacial de contigüidade, dada a independência que as estruturas assumem.

A polifonia: múltiplas vozes narradoras

O narrador do romance O Mundo de Flora assume várias identidades. O início da narrativa é marcado pela presença de um narrador em primeira pessoa, que abre o cenário para o leitor através do monólogo interior: ´São três horas da tarde. (...) Trancada em meu quarto, vejo a luz do sol filtrada pelas persianas e ouço, vindos de longe, sons que me parecem do Carinhoso. (...) Para quem escrevo? Para mim mesma? Alguém lerá estas páginas?' (p. 13)

Em seguida, na segunda microestrutura. um outro narrador assume o comando da narrativa, desta feita em terceira pessoa, atuando num tempo não determinado, em relação à primeira microestrutura. Essa técnica de construção da narrativa vai, desde já, excitar a curiosidade daquele leitor acostumado a uma leitura linear de um texto. O tempo desse fragmento tanto pode ser o da primeira microestrutura, como um outro anterior ou posterior a ela. Tal narrador, assim, assume essa ambigüidade temporal, que vai ser a chave para o deslindamento da estrutura singular desse romance. Em qualquer dos casos, porém, temos a mesma cena vista sob dois pontos de vista: o do personagem, visto por ele mesmo, e esse personagem visto sob o ângulo de um outro narrador: ´O espelho de cabo de marfim devolveu-lhe a imagem de uma mulher de trinta e três anos, bonita ainda, apesar das duas vincas que nasciam nas asas do nariz e se amorteciam nos cantos da boca. Boca de lábios cheios e sensuais, dizia Diego.´ (p. 13)

Então, como já visto, todo o cenário do romance é construído por fragmentos. Desta maneira, o romance O Mundo de Flora torna-se polifônico, em que as muitas vozes encarregadas de comporem tal cenário possibilitam a visão relativa do mundo ficcional apresentado. Com essa construção polifônica de narradores, não há uma voz que se imponha às demais, pois cada uma tem sua visão, que é tão verdadeira quanto às outras; visão essa que abre uma abrangente paisagem para o leitor, que as interpreta tendo por suporte os múltiplos planos que lhe são apresentados.

Em alguns momentos, a ambigüidade do discurso não permite que identifiquemos o narrador como sendo em primeira ou terceira pessoa: ´Ao chegar à sala de almoço, respirava aliviada. Ali, o telefone, o rádio, a sariema e a arara se encarregavam de afastar os maus espíritos. Era o único lugar claro e alegre daquela casa.´(p. 16) O verbo desse fragmento tanto pode ter como sujeito oracional "eu", como "ela". Em qualquer dos casos, não se sabe se o referente diz respeito à personagem ´Flora´ - mãe, ou ´Flora´- filha. Tal indeterminação, proporcionada pela desinência do verbo, ganha relevância na medida em que as microestruturas têm autonomia narrativa, ou seja, na grande maioria desses fragmentos, não há nenhum sinal de contigüidade que permita assegurar a linearidade da narrativa.

Diz-se isso para dar ênfase a mais uma das características do narrador desse romance: o narrador híbrido - aquele que pode assumir várias identidades ao mesmo tempo; podendo ser um narrador-personagem, ou um narrador em terceira pessoa.

A história, às vezes narrada através de monólogo interior, também permite a presença desse narrador híbrido. É o caso do fragmento ´sentado em pé´, em que a incoerência semântica tanto pode lembrar o pensamento lúdico da infância - neste caso identificaríamos a personagem ´Flora´-criança -, como possibilitar a presença de um outro narrador que não guarda nenhuma semelhança com os demais, haja vista que em nenhum momento do livro, além desse, essa construção frasal se repete: ´Era meia-noite, o sol despontava no horizonte. Sentado em pé, numa pedra de pau, nu com a mão no bolso, o homem calado, assim me dizia, enquanto caminhava parado...' (p. 57)

Percebe-se que o narrador de O Mundo de Flora se comporta de várias maneiras, assumindo várias identidades que, em alguns casos, nada tem de comum com os demais. Ele entra e sai da narrativa sem nenhum compromisso com a história da personagem ´Flora´ (mãe e/ou filha), o que faz dele, além do hibridismo que assume, também um emissor de uma mensagem aparentemente sem nenhuma relação com a fabulação, como foi o caso desses dois últimos excertos.

A polifonia de vozes, assim, é uma característica do romance moderno. O que vai diferenciar o texto de Angela Gutiérrez é o hibridismo que o narrador assume. Desta maneira, alguns narradores aparecem camuflados, com identidades desconhecidas, para tentar decifrar, para o leitor, o que há por traz do mundo da personagem.

A técnica da montagem, da colagem, da visão cinematográfica, tudo isso, naturalmente, muita influência teve dos movimentos vanguardistas europeus do início do século, como o Cubismo, o Surrealismo, o Dadaísmo etc. Há um aproveitamento das técnicas utilizadas pelas vanguardas, que aparecem com novos elementos estruturantes do discurso, como é o caso do refazimento da vida da personagem ´Flora´.

Ainda em relação ao narrador: ´O narrador distancia-se ainda mais da matéria narrada e converte-se num observador, quase um repórter. No romance O Mundo de Flora, pela diversidade de narradores, há aqueles que se comportam como o narrador tradicional, onisciente, mas há aqueles que se distanciam da matéria narrada, como foi o caso dos dois últimos excertos. É o caso também do fragmento ´dentro da gaveta´, em que um deles, em primeira pessoa, assume, em determinado ponto da narrativa, um comportamento distanciado, que quer somente resumir um enredo: ´A estória do conto é simples. Uma menina de cinco anos tenta chamar a atenção da mãe que parece alheia a tudo. Finalmente a mãe nota sua presença e lhe diz coisas que só uma criancinha pode entender. Que vai fazer a mesma viagem que o papai fez um dia, que não pode levá-la. Pede que a menina a deixa só porque vai tomar um pó que a levará para esse lugar tão longe e de onde não voltará'. (p.167)

Ou o caso de ´certidão de nascimento´, nítida colagem, em que o narrador somente informa os dados de nascimento de um personagem, utilizando-se, como é comum nestes casos, de uma linguagem completamente referencial: ´Certifico que no livro 165 do Registro de Nascimento, às fls. 385, sob o no. de ordem 226.685, consta que, no dia 30 de outubro de 1970, nasceu uma criança do sexo masculino de nome Diego Fernández Filho...´ (p. 151)

O narrador desse fragmento assume, naturalmente, uma outra identidade - a de um tabelião -, que somente aparece neste momento da narrativa. Aparece como simples emissor de uma mensagem para, logo a seguir, desaparecer. Neste caso, ele tem a função precípua de um narrador aparentemente descompromissado com o enredo, haja vista esse fragmento não ter, à primeira vista, nenhuma conexão com a história, a não ser a de informar - referencialmente - um nascimento. É um caso típico de transcontextualidade: o discurso de um outro contexto - o do universo cartorário - atuando no contexto do universo literário.

O importante a observar, neste caso, é que a autora, com esse procedimento, vem não só reafirmar que a linguagem não é mais exclusiva de um gênero como categoria impositiva, como também se referir à questão da dissolução dos gêneros, cuja pureza começou a ser abalada quando da intromissão de termos prosaicos à poesia, como disse Haroldo de Campos, em seu livro Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana. A linguagem, assim, qualquer que seja o campo semiótico utilizado, não pertence a nenhum deles com exclusividade.

Da estrutura narrativa

Por conta do narrador híbrido, que se desloca a cada fragmento, assumindo, como já dissemos, várias identidades, o tempo do romance O Mundo de Flora torna-se, também, fragmentário, não-linear. A vida da personagem é contada sob vários planos temporais, em que cada fragmento assume, na maioria das vezes, uma feição completamente independente do tempo do fragmento anterior, ou do que se lhe segue. Desta maneira, em um determinado fragmento mostra a personagem em uma fase da sua vida.

No fragmento seguinte, esse personagem pode estar vivendo em uma época completamente diferente do anterior; ou o narrador pode se referir a outros episódios que não guardam nenhuma continuidade, nem de tempo nem de enredo, com os fragmentos anterior ou posterior. Por conta dessa estrutura, é que tais microestruturas são montadas cinematograficamente na mente do leitor, que fica encarregado de uni-las e, com isso, dar nexo à narrativa: ´Feriado. Fomos para a casa de praia do meu tio. E o que eu gostava mais na praia era de brincar nas dunas. A subida era difícil. Os pés afundavam na areia fofa e tinha de fazer muita força nas pernas magras para ir subindo'. (p. 95)

Todo o texto de O Mundo de Flora é montado desta maneira, por isso, raras são as vezes em que há uma linearidade temporal. Para a autora, através desse narrador - seja ele em primeira ou terceira pessoa -, o que interessa é o momento da lembrança, do episódio vivido pelo personagem. Assim, o tempo e/ou episódio podem ser contínuos ou não. O que observamos é que a descontinuidade prevalece no texto.

O mundo da personagem é reconstituído através de vários planos temporais e episódicos. Por esse motivo é que há a tentativa de reconstrução da história do personagem através dos vários fragmentos que se achavam perdidos na lembrança.

O valor atual, neste romance, é o valor da memória, dos episódios da personagem que são revividos como presente, daí a constante mudança de planos temporais. O narrador, neste caso, não conta tais episódios somente como passado, como numa narrativa de tempo cronológico; o tempo, no caso, é presentificado a cada faceta vivida pelo personagem. As fronteiras entre passado e presente, assim, não existem, pois elas se atualizam a cada fragmento.

Cada fragmento pode assumir várias formas: de um poema, de um convite, de um telegrama, de uma certidão de nascimento etc. O tempo, por isso, é independente em cada fragmento, cuja atualização se processa em cada um deles, daí a subjetividade e a relativização desse tempo. O Mundo de Flora é um romance de muitos tempos, por isso há o indicativo da autora: ´O mundo de Flora, onde tantos mortos moram e alguns vivos, o leitor poderá conhecê-lo de um corrido só, de cabo a rabo, como se diz, ou folheá-lo ao acaso, buscando costurar os retalhos a seu gosto, ou, ainda, poderá guiar-se pelo índice que se segue e pelos indículos que o seguem. (p. 180)

O leitor, portanto, é o encarregado de recompor o mundo da personagem a partir dos vários momentos por ela vivido, que é contado por um narrador descompromissado com a lógica linear. O compromisso desse narrador é o de tentar refazer o mundo de ´Flora´, através dos vários retalhos da memória. O tempo, por conta disso, se desenha pelas lentes múltiplas de vários narradores, em que cada fragmento tem sua independência.

O discurso

O Mundo de Flora é um romance composto de muitos fragmentos, como já dissemos. Essas microestruturas adquirem, por isso, várias feições, assumem várias formas como a de um poema, de uma carta, de um telegrama etc, como frisamos no item anterior. O discurso, neste caso, também se diferencia a cada nova forma. Utilizamos o termo discurso no sentido que lhe dá Tzvetan Todorov, no ensaio intitulado ´As Categorias da Narrativa Literária´.

A estrutura epistolar não é novidade na literatura. Vários autores a utilizaram como recurso e argumento da fabulação. Tal recurso foi utilizado pelos autores que dele se valeram para dar continuidade à história, à fabulação, num procedimento coerente e explicativo com o restante do enredo.

O narrador, em muitos casos, dá uma explicação para a introdução da estrutura epistolar no enredo. No caso deste romance, essa estrutura vem, como as demais, independentes da fabulação; não guarda nenhuma contigüidade com as que se lhe avizinham, como é comum em todo o livro. A epístola, no caso, é uma lente a mais que desvenda o mundo da personagem; assume a função de um narrador a mais: (I) Meu bem, Viajei preocupada. Deixar os meninos assim... Mas é o jeito. Tia Branca não pode ficar só. E a nossa caçula Florzinha? Está tão magrinha! (p. 15); (II) Mamãe, Estou dizendo essa carta para o Papai escrever Quando a senhora viajou, chorou olhando para mim dormindo no berço? (p. 21)

Os dois fragmentos acima, apesar de perfazerem um tipo de comunicação entre os personagens, não guardam nenhuma contigüidade no romance, uma vez que estão separados por vários outros fragmentos descontínuos, daí a necessidade de o leitor estar sempre recompondo o mundo da personagem, através dos vários e descontínuos retalhos que lhe são apresentados. No caso acima, o discurso, como é comum nesse tipo de texto, é referencial, denotativo.

A intertextualidade

A intertextualidade é um procedimento que Domício Proença Filho considera como pós-moderno: ´presentifica-se uma tendência à utilização deliberada da intertextualidade´. Isso ocorre com muita freqüência neste romance. Esse procedimento estilístico aparece sob a forma de poemas, de letras de músicas que marcaram uma época, de frases de outros autores: há um diálogo constante entre esses textos; há inclusive a identificação da personagem ´Flora´ com as personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato: ´Narizinho ria de mãos dadas com a Emília. Vamos, Flô. Toma o pó, Flô. O pó de Pirlimpimpim.´ (p.85)

Outros exemplos: (I) O homem da vassoura vem aí / Não sei pra onde vou com a família / Eu só queria, eu só queria / Ver o homem da vassoura em Brasília (p. 141); (II) - Pra ver a banda passar / cantando coisas de amor. (MF, p. 149); (III) Diga trinta e três. Diga trinta e três. Era dançar o tango argentino Y todo a media luz, crepúsculo... (MF, p. 158); (IV) Me solte, doutor, que eu não tenho paciência de ser preso. (MF, p.177); (V) Me encontrará tremendo de medo da mão descarnada, conversando com filósofo do Humanitismo, vivendo amores de perdição e de salvação. (MF, p.177); (VI) Que saudades que eu não tenho da aurora da minha vida. (MF, p.178); (VII) Uma cova rasa, nem larga nem funda, é a parte que me cabe. (p. 178); (VIII) Saio da vida sem entrar na história. (p.178); (IX) Viver, todo o mundo sabe, é muito perigoso. (p.179).

No caso dos excertos acima, tem-se o exemplo de intertextualidade ´hetero-autoral´, que é a interação de textos de autores distintos. Angela Gutiérrez não se utiliza somente de textos literários para revelar a intertextualidade, mas de fragmentos de textos de outros contextos semióticos, como é o caso acima, de uma frase - modificada, como podemos notar - da carta escrita por Getúlio Vargas antes de suicidar-se; ou o caso da famosa frase do guerrilheiro Che Guevara: ´Hay que tener dignidad hasta el fin, hasta la muerte´ (p. 178). Ao final do livro, a autora se vale do final de algumas histórias infantis para elaborar o ´segundo´ final do seu romance: ´Entrou pela perna do pato, saiu pela perna do pinto e o senhor-rei mandou dizer que contasse mais cinco. Quem quiser que conte as outras; eu, por aqui, paro. Não quero criar rabo de cutia contando estória de dia'. (p.179)

Fonte parcial: Paulo de Tarso Pardal, professor, contista, ensaísta e poeta
Endereço: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/o/o_mundo_de_flora

Entre a Boca da Noite e a madrugada, de Milton Dias

Entre a boca da noite e a madrugada, de Milton Dias
O livro Entre a boca da noite e a madrugada, de Milton Dias, representa o gênero crônica.

Ao se projetar em algumas dessas crônicas, o escritor se apresenta como um saudosista incurável. Seus personagens são reais e marcados por uma visão fraternal.

Essencialmente cronista, Milton Dias sabe a importância das coisas miúdas, dos pequenos acontecimentos que também fazem parte da condição humana.

Ao captar instantes, fragmentos de tempo, ele, com o olhar agudo, entende que aí se esconde a complexidade de nossas dores, das nossas alegrias, dos nossos sonhos, das nossas frustrações; percebe, assim, que, por trás do aparentemente banal, do que pode parecer inexpressivo, está algo que nos perturba, que diz de nós, que, afinal, espelha nosso duplo ou fragmentos de nossos valores, crenças e modos de ver o mundo.

A crônica de Milton Dias é, essencialmente, lírica. Sua linguagem flui em ritmo prolongado, muitas vezes em períodos longos, mas em frases curtas, e dessa combinação se evola um quê de música, de melodia que se encontra nas vozes da natureza. O gosto pelos adjetivos faz com que os quadros da realidade por ele captados banhem-se de uma atmosfera pastosa, pois tudo se deixa envolver pela emoção.

É ele, sobretudo, um amante da cidade que o acolheu - esta Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Em suas crônicas, enumeram-se os logradouros, os monumentos, os tipos populares, os movimentos da noite, o conto dos galos, o apito dos vigias, os automóveis com os seus faróis queimando a noite escura. Naturalmente, tal configuração já não mais condiz com os dias de hoje; entanto, lê-lo é deparar uma outra Fortaleza, estabelecendo, assim, uma ponte entre o passado e o presente; é, pois, um reencontro com fragmentos de nossa identidade.

O livro Entre a boca da noite e a madrugada se divide em cinco partes: "Os bichos"; "O tempo"; "As mulheres"; "Os homens"; e "Mar, sertão, rosas e outras".

Conheça a crônica Os golinhas, contida nesta obra de Milton Dias.
Os golinhas (Crônica da obra "Entre a boca da noite e a madrugada"), de Milton Dias
Os golinhas é uma crônica que faz parte do livro Entre a boca da noite a madrugada, de Mílton Dias.

O cronista conta aqui o drama da amiga: sua mãe ganhara, há 14 anos um golinha sertanejo (um pássaro típico do sertão cearense). A senhora o tem como se fosse um filho. Quando sai para uma viagem, encarrega a filha de tomar conta do pássaro, porém este é seqüestrado “com gaiola e tudo”. Nesta crônica, há um tentativa do cronista em manter o leitor bem próximo a si, para isso, a todo momento, a escritura parece dialogar com o leitor hipotético. Aproxima-se da oralidade, recorrendo ao caráter polissêmico das palavras, usando citações, intertextualidade ou coloca fragmentos de textos da Bíblia, usa a técnica da superposição de assuntos e ao passado, ligando-os ao presente.

A expressão inicial "Não sei se vocês já viram um golinha..." (1º parágrafo) aponta bem a natureza do gênero crônica: o texto mais se aproxima de uma conversa do que de um texto escrito de modo burilado, daí a sua aproximação da oralidade; mas o coloquialismo não é a pura frase ouvida na conversa popular, mas uma recriação, uma elaboração de um diálogo entre o cronista e o leitor - e o dialogismo é meio por que se inscreve o equilíbrio entre o coloquial e o literário, permitindo que o lado espontâneo e sensível permaneça como elemento provocador de outras visões do tema e subtemas que estão sendo tratados numa determinada crônica.

Na descrição do pássaro, para atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos, o cronista recorre ao caráter polissêmico das palavras, a inusitadas alianças: "pássaro criança"; "miniatura de bico de papagaio".

No 2º parágrafo, o termo inaugural "Sei," retoma o diálogo fictício com o leitor; depois, a passagem "porque um tempo destes aportou um aqui em casa..." apresenta um dos mais sagrados espaços de um cronista: "a casa" - esta, muitas vezes, é o canteiro da memória.

No 3º parágrafo, surge o espaço doméstico, exatamente para que a "casa" do cronista se confunda com a casa de um leitor qualquer: "a Rita lhe arranjou morada noutra gaiola". Mais uma vez, imprime-se a oralidade: "Só vendo, como, de repente, se entenderam bem..."; e o convívio de dois pássaros "de formação e de raça tão desigual" é recriado e, indiretamente, parece uma lição aos homens, cuja convivência é sempre difícil, precária, belicosa.

No 4º parágrafo, quebra-se a harmonia inaugural: a presença de um ´menino´ (representante da cultura) invade o espaço dos pássaros (representantes da natureza), estabelecendo, portanto, a desordem: a fuga dos pássaros. Por fim, um recurso comum ao gênero crônica: a recorrência a citações ou intertextualidades, numa alusão ao Cântico dos cânticos - de Salomão.

Nos 5º parágrafo, 6º parágrafo e 7º parágrafo, o cronista recupera uma cena do passado - uma também fuga de um pássaro, "um canário belga" - para, assim, inserir um contraste, apontando as duas faces de um mesmo fato: se agora, a fuga do pássaro deu-lhe "a tristeza da perda"; antes, "Foi até bom". Por fim, a casa se amplia, com a notícia de que aí vivem também outros pássaros, como "aquele casal azul de periquito australiano", que seguiu à risca o conselho bíblico: "Crescei e multiplicai-vos".

Nos 8º parágrafo e 9º parágrafo, noticia-se a volta do "golinha" fujão, e surgem mais citações e alusões: fragmentos de um poema e uma parábola bíblica.

O 10º parágrafo surpreende o leitor: o golinha, a rigor, não é o motivo central da crônica, mas tão-somente um pretexto: se está falando de golinhas, é para contar o drama de uma amiga "e correr em seu auxílio e pedir em seu favor, que ela me merece muito".

O discurso literário de Milton Dias possui um feixe de possibilidades. Nessa crônica, destaca-se a técnica da superposição de assuntos, que consiste em, a princípio, apresentar um interesse textual, (nesse caso, a súbita chegada de um golinha, sua estada, sua fuga, seu retorno) cuja função é apenas a de criar uma atmosfera propícia para receber o motivo maior do texto (o drama de uma amiga, com a fuga do pássaro de estimação de sua mãe, dela.)

Do 11º parágrafo ao 14º parágrafo, resume o drama da amiga: a mãe desta ganhara, há 14 anos, um golinha sertanejo, "com uma mecha branca no alto da cabeça, como marca de linhagem" (o que o torna, afetivamente, mais valioso, mais precioso, pois singular); a senhora afeiçoou-se ao pássaro como a um filho; necessitando fazer uma viagem, deixou-o aos cuidados da filha; porém, o pássaro foi seqüestrado, "com gaiola e tudo".

O 12º parágrafo, assim como o 1º parágrafo, tem como marca a conversa entre o cronista e seus leitores, num tom de apelo, como quem tem a certeza de que, realmente, possui receptores: "Pelo amor de Deus, se tiverem notícia, se desconfiarem de alguém com cara de seqüestrador de golinha, denunciem, venha depressa avisar." Reforça o apelo com a intensidade emotiva: "Vocês não podem calcular a falta que faz um golinha numa casa". Com tal procedimento justifica toda a passagem que trata da chegada, da fuga e do retorno do golinha inicial.

Leia a crônica na íntegra:

OS GOLINHAS
Não sei se vocês já viram um golinha - mas é a coisa mais bonita, mais frágil e mais inquieta deste mundo, um pássaro criança, pequeno, alegre, de bons costumes, caseiro, comunicativo, cantador. Pode viver o tempo que viver, não passa daquele tamanho de beija-flor. A plumagem é cinza, o papo branco, com uma gola preta e o bico amarelo é ver miniatura de bico de papagaio.

Sei, porque um tempo destes aportou um aqui em casa, veio por conta própria, sozinho, espontaneamente e ele mesmo se ofereceu para ficar, entrou na gaiola de uma das graúnas, que era a que tinha as grades mais abertas, passou entre os arames sem nenhuma dificuldade, feito menino vadio que fura pano de circo. Sem dúvida estava acostumado à vida doméstica e sendo, como ficou entendido, de fácil convivência, não criou problema com a anfitriã, não se comportou mal, nem aborreceu.

Achou-se então que não devia ficar junto de pássaro tão diferente, e a Rita lhe arranjou morada numa outra gaiola, onde já vivia um papa-capim, que é do mesmo tamanho. Só vendo, como, de repente, se entenderam bem, pareciam amigos que se aguardavam há muito tempo, festejaram-se, cantavam juntos todo dia de manhã, e à noite dormiam encostados um ao outro, num comovente exemplo de solidariedade e de apoio mútuo. E ensaiavam duetos que nunca davam certo, porque, tendo voz desigual e vindo de escola, de formação e de raça tão diferentes, desafinavam tanto que parecia discussão.

A vida ia correndo assim muito bem, para eles e para nós quando, numa manhã do mês passado, um menino derribou a gaiola e a porta se abriu e os dois, certamente assustados, partiram imediatamente. Não houve tempo para nada, desapareceram como o cabrito montês do Cântico dos Cânticos.

Nós sofreemos nossa boa humilhação, além da tristeza da perda. Não vê que a gente vivia se gabando que esta casa é tão acolhedora que até os pássaros se dão bem, pedem para ficar e são incapazes duma tentativa de fuga! Era esta a tradição, tirante, é claro, o caso daquele nosso canário belga, que tinha péssimos antecedentes, já vinha de muitas gaiolas, se servia muito mal, estragava a comida, derramava a bebida, sujava tudo, brigava, era uma verdadeira vocação de baderneiro.

Um dia, não sei que gazua ele tinha no bico, deu um jeito no ferrolhinho de arame e bateu asas. Foi até bom. Que este canário era um mau exemplo, má companhia, egoísta, tão desequilibrado, que se chegava a suspeitar de alguma perturbação emocional! Tivesse psiquiatra de passarinho, a gente teria mandado consultá-lo.

Os outros que estão conosco há muito tempo se dão otimamente, engordam, vivem felizes, alguns até constituíram família, como aquele casal azul de periquito australiano, que já tem uma descendência biblicamente numerosa.

Pois uma tarde destas, inesperadamente, o Golinha voltou sozinho. Ô papa-capim se mandou duma vez, não deu a menor notícia e desta atitude não nos ficou nenhuma mágoa. Aqui aprendemos todos a lição do poeta Carlos de Queirós: "Quem não nos quer é que nos deixa. E quem não nos quer bem, deixa-los ir."

A família se rejubilou com a volta do Filho Pródigo, que logo retomou os antigos hábitos, passou a ocupar a mesma gaiola e a cantar como dantes. A gente não sabe interpretar o canto dos pássaros, vai ver, quando o pobre está soltando aquele trinado de saudade é convocando o companheiro e o advertindo dos percalços de viver por conta própria, aventurando de galho em galho, sem a mão protetora da Rita, que é doida por criança, por planta e por bicho.

Eu falava a uma amiga da alegria que nos tinha causado a recuperação do Golinha, quando a pobre, à proporção que me ouvia, ia se emocionando, até às lágrimas. É que, enquanto eu contava as glórias da nossa vitoriosa experiência com esta amável família de minipássaros, ela estava vivendo um drama ligado à mesma distinta alígera família. E é por isto que eu estou aqui falando de golinhas, é para contar o seu caso e correr em seu auxílio e pedir em seu favor, que ela me merece muito.

Foi assim: a senhora mãe desta minha amiga, que é também gente da minha grande estima, ganhou, faz coisa de quatorze anos, das mãos do genro, um golinha nascido em Sobral, com uma fina mecha branca no alto da cabeça, como marca de linhagem.

Aí, depressa se afeiçoou ao passarinho (é extremamente fácil querer bem a eles) e o tratava como quem cuida de filho pequeno: conhecia seus dengues e cacoetes, suas tristezas e exaltações, e, quando ele adoecia, ela mesma diagnosticava e medicava como convinha.

Agora, a senhora mãe viajou e deixou o seu golinha de estimação na casa daquela dita filha. E eu sou testemunha de como a hospedeira cuidava bem do hóspede, com zelo especial, até com ternura - e não lhe deixava faltar alimento, nem água da melhor e recolhia a gaiola na hora regulamentar - fazia tudo de acordo com as recomendações.

Pois uma desgraça aconteceu: seqüestraram o golinha, com gaiola e tudo. Ah bandidos, corja, malta de salteadores e de malfeitores! E aquela a quem o pássaro fora confiado está gravemente inquieta, preocupada com a sorte do seu tutelado, se pegando com tudo quanto é santo para descobrir o seu paradeiro.

Pelo amor de Deus, se tiverem notícia, se desconfiarem de alguém com cara de seqüestrador de golinha, denunciem, venham depressa avisar. Vocês não podem calcular a falta que faz um golinha numa casa.
Endereço: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/os_golinhas_cronica

Cordéis e outros poemas, de Patativa do Assaré

Cordéis e outros poemas, de Patativa do Assaré
Organizado por Gilmar de Carvalho, Cordéis e outros poemas é uma coletânea da obra de Antônio Gonçalves da Silva, o "Patativa do Assaré", publicada pela editora da Universidade Federal do Ceará. A diferença reside na inclusão de dois poemas - "Cante lá, que eu canto cá" e "A terra é naturá" -, a ausência do cordel "História de Aladim e a Lâmpada Maravilhosa" e dos textos introdutórios.

É um livro que tematiza a literatura popular, o universo dos livros vendidos em feiras pelo interior do Brasil.

"Cordel", etmologicamente, deriva de "cordão", mecanismo através do qual os poetas populares penduravam em feiras, seus livretos, para atingir o público consumidor.

Literatura de cordel é uma poesia folclórica e popular com raízes no Nordeste brasileiro. Consiste basicamente em longos poemas narrativos chamados "romances" ou "histórias", impressos em folhetim ou panfletos de 32 ou, raramente, 64 páginas, que falam de amores, sofrimentos ou aventuras, num discurso heróico de ficção.

Em Cordéis e outros poemas, podemos observar textos de natureza dissertativa, reflexiva, ampliando o conceito tradicional que diz que "cordel é poema em forma de narração". Isso mostra a versatilidade de Patativa do Assaré.

O autor muitas vezes reflete, analisa, discute acerca das dificuldades de vida do homem sertanejo.

Seus temas também são ampliados, variados, indo além do conceito clássico de que "cordel fala de amor, sofirmento ou aventura". Patativa, com sua profunda consciência social, também tematizou a desigualdade do Nordeste, os conflitos de terra, os problemas envolvendo o latifúndio, a profunda religiosidade e o misticismo do homem simples do sertão do Brasil.

Portanto, os aspectos temáticos da obra são: a pobreza e o sofrimento do sertanejo, a felicidade e o infortúnio, o bem e o mal, o sertão e a cidade, o latifúndio e o agregado, o retirante, o social e o político, a ética e a honestidade, o perdão e a grandeza, a fé em Deus e na religião (Patativa sempre, como todo sertanejo, foi um homem de muita fé).

Patativa sempre viu a necessidade de justiça e de igualdade. Foi um poeta social voltado para a observação do universo e mazelas do homem simples.

Ainda a dimensão o sofrimento e do heroismo, o êxodo rural e a saudade da terra natal, a preservação da tradição, a valorização da natureza, o agreste, o semi-árido, são temas que sempre foram cantados em versos por Patativa do Assaré.

A obra Cordéis e outros poemas se constitui de 15 cordéis e 2 poemas onde, do ponto de vista estrutural, predominam as sextilhas e as décimas, ambas com versos de 7 sílabas poéticas (redondilha maior).

Observações:

Sextilhas = 6 versos que apresentam rimas nos versos pares.
Redondilha maior = Versos de 7 sílabas poéticas.
Décimas = estrofe com 10 versos.

Fragmento do poema A TERRA É NATURÁ

Esta terra é como o Só
Que nace todos os dia
Briando o grande, o menó
E tudo que a terra cria.
O só quilarêa os monte,
Tombém as água das fonte,
Com a sua luz amiga,
Potrege, no mesmo instante,
Do grandaião elefante
A pequenina formiga.

Esta terra é como a chuva,
Que vai da praia a campina,
Móia a casada, a viúva,
A véia, a moça, a menina.
Quando sangra o nevuêro,
Pra conquistá o aguacêro,
Ninguém vai fazê fuxico,
Pois a chuva tudo cobre,
Móia a tapera do pobre
E a grande casa do rico.

Esta terra é como a lua,
Este foco prateado
Que é do campo até a rua,
A lampa dos namorado;
Mas, mesmo ao véio cacundo,
Já com ar de moribundo
Sem amô, sem vaidade,
Esta lua cô de prata
Não lhe dêxa de sê grata;
Lhe manda quilaridade.

Esta terra é como o vento,
O vento que, por capricho
Assopra, às vez, um momento,
Brando, fazendo cuchicho.
Ôtras vez, vira o capêta,
Vai fazendo piruêta,
Roncando com desatino,
Levando tudo de móio
Jogando arguêro nos óio
Do grande e do pequenino.

Se o orguiôso podesse
Com seu rancô desmedido,
Tarvez até já tivesse
Este vento repartido,
Ficando com a viração
Dando ao pobre o furacão;
Pois sei que ele tem vontade
E acha mesmo que percisa
Gozá de frescô da brisa,
Dando ao pobre a tempestade.

Pois o vento, o só, a lua,
A chuva e a terra também,
Tudo é coisa minha e sua,
Seu dotô conhece bem.
Pra se sabê disso tudo
Ninguém precisa de istudo;
Eu, sem escrevê nem lê,
Conheço desta verdade,
Seu dotô, tenha bondade
De uvi o que vô dizê.

Não invejo o seu tesôro,
Sua mala de dinhêro
A sua prata, o seu ôro
O seu boi, o seu carnêro
Seu repôso, seu recreio,
Seu bom carro de passeio,
Sua casa de morá
E a sua loja surtida,
O que quero nesta vida
É terra pra trabaiá.

Iscute o que tô dizendo,
Seu dotô, seu coroné:
De fome tão padecendo
Meus fio e minha muié.
Sem briga, questão nem guerra,
Meça desta grande terra
Umas tarefa pra eu!
Tenha pena do agregado
Não me dêxe deserdado
Daquilo que Deus me deu.

1. (FARIAS BRITO) Texto para as questões 01 a 06

Esta terra é como o Só
Que nace todos os dia
Briando o grande, o menó
E tudo que a terra cria.
O só quilarêa os monte,
Tombém as água das fonte,
Com a sua luz amiga,
Potrege, no mesmo instante,
Do grandaião elefante
A pequenina formiga.

Esta terra é como a chuva,
Que vai da praia a campina,
Móia a casada, a viúva,
A véia, a moça, a menina.
Quando sangra o nevuêro,
Pra conquistá o aguacêro,
Ninguém vai fazê fuxico,
Pois a chuva tudo cobre,
Móia a tapera do pobre
E a grande casa do rico.

Esta terra é como a lua,
Este foco prateado
Que é do campo até a rua,
A lampa dos namorado;
Mas, mesmo ao véio cacundo,
Já com ar de moribundo
Sem amô, sem vaidade,
Esta lua cô de prata
Não lhe dêxa de sê grata;
Lhe manda quilaridade.

Esta terra é como o vento,
O vento que, por capricho
Assopra, às vez, um momento,
Brando, fazendo cuchicho.
Ôtras vez, vira o capêta,
Vai fazendo piruêta,
Roncando com desatino,
Levando tudo de móio
Jogando arguêro nos óio
Do grande e do pequenino.

Se o orguiôso podesse
Com seu rancô desmedido,
Tarvez até já tivesse
Este vento repartido,
Ficando com a viração
Dando ao pobre o furacão;
Pois sei que ele tem vontade
E acha mesmo que percisa
Gozá de frescô da brisa,
Dando ao pobre a tempestade.

Pois o vento, o só, a lua,
A chuva e a terra também,
Tudo é coisa minha e sua,
Seu dotô conhece bem.
Pra se sabê disso tudo
Ninguém precisa de istudo;
Eu, sem escrevê nem lê,
Conheço desta verdade,
Seu dotô, tenha bondade
De uvi o que vô dizê.

Não invejo o seu tesôro,
Sua mala de dinhêro
A sua prata, o seu ôro
O seu boi, o seu carnêro
Seu repôso, seu recreio,
Seu bom carro de passeio,
Sua casa de morá
E a sua loja surtida,
O que quero nesta vida
É terra pra trabaiá.

Iscute o que tô dizendo,
Seu dotô, seu coroné:
De fome tão padecendo
Meus fio e minha muié.
Sem briga, questão nem guerra,
Meça desta grande terra
Umas tarefa pra eu!
Tenha pena do agregado
Não me dêxe deserdado
Daquilo que Deus me deu.

(Fragmento do poema "A terra é naturá". In: Cordéis e outros poemas. Patativa do Assaré.)

O estilo autoral em Cordéis e outros poemas carece de:

a) cantigas de tradição oral.
b) lírico compromisso com sua realidade.
c) padronização da métrica alexandrina.
d) linguagem regional que subverte o modelo culto.
e) expressão dilemática, que tenta exaltar a vida campestre.


2. Ao se projetar nos versos, o escritor se representa como:

a) satírico poeta da existência sertaneja.
b) teórico cientista da problemática humana.
c) realista observador dos hábitos urbanos.
d) persistente cantor da experiência roceira.
e) teórico poeta de nossa vivência histórica.


3. O texto em estudo:

a) denuncia o conflito pessoal do homem inculto.
b) consolida o conformado padecimento do sertanejo.
c) preserva sua postura de luta contra a ostentação dos lavradores.
d) divulga os valores básicos do discriminado lavrador.
e) enaltece a natureza resignada do deserdado caipira.


4. Assinale a alternativa na qual está presente o conjunto de elementos que caracteriza o poema em estudo.

a) Consciente visão da estrutura fundiária, arte de comunhão social.
b) Presença de conclusões parciais, manifesta insatisfação pessoal.
c) Visão puramente subjetiva, indignação do escritor diante das discriminações.
d) Observação da realidade agrária, teorização que descarta o valor emocional.
e) Farta adjetivação, engajamento do poeta frente à realidade.


5. Infere-se do texto que, para o poeta, as relações humanas:

I. sugerem conjugação participante e solidária;
II. devem imitar a natureza, copiando sua beleza e equilíbrio;
III. apresentam-se com equivalência, aproximando coronel e agregado.

Em relação às afirmativas acima:

a) somente I está correta.
b) somente II está correta.
c) somente I e II estão corretas.
d) somente II e III estão corretas.
e) I, II e III estão corretas.

6. O texto identifica-se como:

a) uma seqüência de reflexões que têm em mira enaltecer o equilíbrio das relações sociais humanas.
b) uma argumentação que objetiva convencer quanto à urgência da partilha de terra entre os brasileiros.
c) uma descrição que revela as condições precárias em que vive o homem do campo.
d) uma dissertação em que, apesar do lirismo poético, se defende a tese da necessidade da reforma agrária.
e) uma exposição dos meios capazes de solucionar os problemas dos lavradores.

Endereço: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/c/cordeis_e_outros_poemas

Três Peças Escolhidas, de Eduardo Campos

Três peças escolhidas, de Eduardo Campos
O livro Três Peças Escolhidas, do cronista e romancista Eduardo Campos, reúne as peças Rosa do Lagamar, Morro do Ouro e A Donzela Desprezada. As duas primeiras foram dos maiores sucessos da Comédia Cearense, com prêmios em festivais pelo Brasil e temporadas em cartaz. Escritas em meados da década de 60, quando a cidade de Fortaleza começava a se expandir em bairros cada vez mais distantes e precários, elas continuam atuais, ao trazerem à cena dramática a questão da inclusão/exclusão social.

O estilo de Eduardo Campos é resultante de dois elementos formadores: de um lado, as aptidões artísticas nascidas do seu temperamento, de sua personalidade interior; de outro lado, as influências das idéias estéticas vigorantes na época e no meio em que ele manifestou e permaneceu.

Pelo seu regionalismo, podemos aproximá-lo de Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz, e por ter utilizado o elemento chuva em sua obra À véspera do Dilúvio (1966), aproxima-se de Antonio Sales.

Eduardo Campos gosta de explorar o campo sensorial, no intuito de fixar bem as imagens descritivas.

Tem preferência pela descrição, pois, conscientemente, sabe que ela possui um apelo sensorial que permite ao observador delinear os elementos apresentados aos poucos, isto é, lentamente pela narrativa.

Essa preferência é importante porque a apresentação dos seus personagens é feita mostrando-os em ação. E, aos poucos, vai compondo o perfil dos caracteres psicossomáticos que os organizaram. Com exemplo, podemos citar, o tipo do agente ferroviário, o cangaceiro ou o delegado.

Eduardo Campos utiliza-se do discurso indireto livre que serve para expressar a fala ou o pensamento das personagens e que tem sido muito usado pelos autores contemporâneo através do narrador.

Quanto aos temas utilizados, que parecem sempre atuais, são frutos do homem contemporâneo que vive angustiado por descobrir o estado de abandono completo em que se encontra, mesmo em relação a seus semelhantes. Daí só lhe restar ironizar a própria sorte.

Em suas peças, procura denunciar, pela ficção, as injustiças sociais a que os personagens estão submetidos. A exposição delas é feita de tal modo que os expectadores não podem permanecer impassíveis. Antes ficam revoltados contra essas injustiças. Ao mesmo tempo são alertados para as táticas utilizadas pelos agentes do poder.

A solidariedade dá o tom aos protagonistas de Eduardo Campos, nestas três peças, onde há também uma denúncia de injustiça por parte do poder que nada faz para minimizar a situação de desamparo das populações desprivilegiadas, mas, ao contrário, procura alimentar-se desse estado de miséria para fortalecer-se.

O Morro do Ouro

Lá para os lados da Barra do Ceará fica o lugar conhecido desde os anos 50 como Morro do Ouro. Era uma comunidade pobre que surgiu em torno do aterro da cidade de Fortaleza, muito tempo antes do Jangurussu. Este é o cenário da peça que leva o mesmo nome, que tem como protagonista a prostituta Madalena e seu amante, o traficante do morro, Zé Valentão. É assim que ela é conhecida na zona. É uma mulher que veio do interior e, por não ter nenhuma qualificação, só encontrou um caminho para viver: prostituindo-se.

Os personagens que compõem a peça vão aparecendo, bem caracterizados. São eles: Ezequiel, cambista, vive do jogo do bicho, é bem humorado e tem sempre uma palavra para se sair das enroscadas, um jeito de rebater a quem lhe destrata; o Aleijado, que pede esmola e que se recusa a ir para um asilo do governo, porque, lá, não pode pedir esmolas, uma irônica, sarcástica e caricatural. É mais um personagem que compõe um conjunto de necessitados; o bodegueiro Patrício, as assistentes sociais, um candidato a vereador - dr. Gervásio, entre outros.

O drama retrata o conflito de Madalena com a chegada da mãe, beata, católica fervorosa e devota de Padre Cícero. Ela não quer que a mãe a identifique como prostituta da zona.

A história então começa com Madalena e Zé Valentão na cama, depois de uma noite de folia. O amante escapole antes que a polícia venha. É de manhã, e logo a favela fica animada com a chegada de uma máquina de costura, entregue ali por ordem do candidato.

Quem também chega são algumas assistentes sociais, e nestas cenas o autor põe à mostra o proselitismo oco, de um lado, e o tal espírito moleque do povão - picaresco e por isso tão escancaradamente verdadeiro, real. "Veja que estou aqui, saindo do meu conforto, para cuidar de vocês. (Olhando ao derredor). Que rua horrível! (Pausa). E esse mau cheiro? É sempre assim?", pergunta a assistente social. A lavadeira, trouxa na cabeça, responde: "Não, não sinto não... Será esta catinguinha? É do lixo! Todo o lixo da cidade é botado na rua". O tensão da peça começa com a chegada de dona Elvira, mãe de Madalena, que vem do interior e nem desconfia da vida que a filha leva. Com a ajuda dos amigos, ela disfarça suas "atividades".

Depois que sua mãe chega, tudo se modifica, porque, sendo devota, vai impor seu ritmo de vida aos demais moradores, e tais moradores modificam-se, realmente.

Logo, dona Elvira inventa uma novena em plena zona do cabaré, que consegue reunir todos os moradores. Mas ela não sabe que sua filha é prostituta, nem que o local onde mora é um cabaré. A sua inocência acaba contagiando os moradores.

A partir da preparação da novena, os moradores vão percebendo que a mudança é benéfica para eles. Assim, o bodegueiro, que só vendia cachaça, passa a vender refresco; o cambista (´Ezequiel´, cujo apelido é ´seu Fortuna´), em vez de fazer as pules do jogo, vende medalhas de santos, etc. Há, portanto, uma grande transformação no morro, e a personagem ´Elvira´, mãe de ´Madalena´, passa a ser a personagem mais importante, a protagonista, pelo menos durante os preparativos da novena.

A escolha do nome para a protagonista, Madalena, é uma referência bíblica, a amiga de Jesus, que se arrepende dos pecados e que passa a seguir os ensinamentos do Filho do Deus.

Os personagens estão juntos pela mesma condição de miserabilidade da favela, do lixão (como se diz hoje): a favela é chamada ´O Morro do Ouro´ por ironia, pois lá é despejado o lixo da cidade. Portanto, são personagens que vivem abaixo da linha da pobreza. É uma zona de risco, como se diz hoje.

Tais personagens, apesar da miserabilidade, estão unidos pela solidariedade. Mesmo com as brigas e com as desavenças que ocorrem, eles se ajudam, afinal estão todos num mesmo miserável espaço, daí o despertar da ajuda mútua ser quase instintivo.

As assistentes sociais, que para lá se deslocam, para ´estudar´ a vida dos miseráveis, são caricaturais, e o que elas fazem, anotando o cotidiano dos favelados em suas cadernetas de campo é motivo de riso.

Outro personagem caricatural é o político, ´Dr. Gervásio´, que é apresentado distribuindo máquinas de costurar, para trocar por votos. É malandro, desonesto, sem escrúpulos; há a sugestão de que ele só possui uma máquina, e que ele faz todo o jogo de enganação, dizendo que já distribuiu centenas delas, e que, quando for eleito, irá morar no Morro do Ouro, para ver como vive a pobreza: um discurso, portanto, demagógico, enganador e oportunista, que se vale da miserabilidade dos moradores da favela para deles tirar proveito.

Há um momento em que tudo muda, e em que se percebe um pequeno questionamento da protagonista.

Quando Zé Valentão sai da cadeia e procura Madalena, e vê que tudo está mudado, inclusive a própria Madalena, que, agora, usa vestidos de manga, comporta-se como uma senhora, ele não entende o que está ocorrendo e cobra de Madalena a antiga postura, o que ela revida dizendo que é outra, que vai mudar de vida, mas o namorado diz que ela é a ´quenga´ dele e que deve ir dizer isso para todo mundo.

É aqui o final e a parte mais tensa da peça. Madalena, por um instante, não sabe onde está a verdade dela: se é prostituta ou se é beata. O que decide o seu dilema é a grosseria de Zé Valentão, que rasga seu vestido, e Madalena, desamparada, corre para a rua e vai se abraçar com a mãe. É aqui que a peça termina.

Há, portanto, um final regenerador: é a Madalena arrependida da Bíblia.

A mensagem desta peça de Eduardo Campos está muito clara na transformação de todos os personagens.

É uma peça mais linear, de poucos questionamentos, mas extremamente realista, que representa muito bem todo o sofrimento da parcela excluída da sociedade.

Portanto, em Morro do Ouro, há a descrição da vida em uma favela de Fortaleza. Os personagens são representantes de um universo que reflete a conseqüências da miséria e do isolamento. A estes junta-se a ironia, que, por paradoxo, cria cenas de humor.

Essas cenas são percebidas por ocasião da visita das assistentes sociais, já citada, que vão ao morro fazer uma pesquisa e se escandalizam com a situação de pobreza e acham que está decore da falta de educação. Na realidade, o autor denuncia, através dessa peça, que os poderosos não têm a intenção de resolver os problemas, e muitos até se beneficiam com essa situação.

A Rosa do Lagamar

Em A Rosa do Lagamar, temos outra vez a presença de mulheres determinadas, fortes, que aprenderam a se virar sozinhas, e romperam os limites sexistas da moral e dos bons costumes sem discurso nem alarde. Como continuam a fazer, ainda agora. Rosa é uma batalhadora. Ela saiu do Lagamar e comprou um terreninho na Aldeota, onde montou uma birosca que serve café e refeições para os trabalhadores de uma obra em construção. O dono do casarão quer o terreno de Rosa, ela não vende. Mas acaba perdendo tudo, porque o documento que tem é falso. Na hora do despejo, Rosa pede para contar as telhas e caibros de sua casa, pela última vez. "São vinte e dois caibros e 72 telhas. Só depois que eu conto é que durmo. É um velho hábito de solidão".

A casa de Rosa estava situada, por um desses descuidos da administração municipal, em local onde, de futuro, se edificaria uma rua. Daquela, vê-se a sala da frente, que é a de uma tapera sem maiores pretensões, guarnecida de móveis rústicos, improvisados. À esquerda, além de parede divisória, avançava para a rua uma puxada a abrigar o recinto que servia de café e restaurante aos trabalhadores de construções do bairro que, embora o mais elegante da cidade, oferecia por vezes visível desigualdade de existência entre os seus habitantes. Adiante, na mesma linha de visão, uma pilha de tijolos e, de permeio a estes, material facilmente identificado como sendo de construção. À frente da casa e do lado direito nota-se, no desenrolar da ação, o trânsito de pessoas, como se de fato ali já se insinuasse uma rua. Na sala da frente da casa de Rosa, que é a dona da tapera e do café ao lado, tudo se assentando caprichosamente, demonstrando pulso forte, e também zelo, de mulher voluntariosa. Numa das paredes vê-se o retrato do marido, o capitão Crispim, que, saindo de Fortaleza como embarcadiço, nunca mais voltou ao lugar. Seu regresso, posto sempre em perspectiva, é um motivo de encanto e ao mesmo tempo de turbulência na vida de Rosa.

É madrugadinha quando se inicia a ação. Na semi-escuridão que ainda faz, destaca-se a figura de Rosa às voltas com os seus afazeres domésticos. Há um ir e vir no interior da casa, passando pela porta que dá acesso ao local do café, a conduzir xícaras, bandejas e confeitos que, é a impressão, prepara naquela ocasião.

A Donzela Desprezada

A Donzela Desprezada é a história de Amelinha, uma moça sonhadora, filha da viúva zeladora da igreja, que transa com o namorado, motorista do caminhão da entrega do gás. Ela é a candidata do partido azul, na quermesse da igreja. Quando a mãe descobre que a filha "se perdeu", fica maluca. Com a ajuda de um jornalista sensacionalista e um policial corrupto, ela convence a filha a dar parte do namorado ao delegado, para forçar o casamento. O motivo pode ter ficado, e ficou, anacrônico, mas a peça não: é arte. A capa do livro traz um óleo sobre tela do artista plástico Nogueira, Casamento no Arraial, bem de acordo com o colorido universo popular de Manelito Eduardo (como o dramaturgo também é conhecido).

O cenário amplo revela os diversos locais em que se desenrolam as cenas.

À esquerda, o quarto de Amelinha, personagem principal da história. Cômodo, modesto, com cama, da qual se verá apenas o essencial, afim de que haja espaço suficiente para as posteriores marcações solicitadas.

Defronte ao espectador, tomando boa porção do palco, o sítio propriamente dito da quermesse, com um bar de três mesas de ferro e cadeiras. Ao lado direito a barraca ou quarto da cartomante, onde Lolita faz a leitura do baralho. Há cerca improvisada partindo do canto esquerdo do bar, a se estender até o proscênio, e, nela, o portão de acesso para a quermesse. Quando corre o pano, Lolita está sentada a uma mesinha entretida com o baralho, deitando-lhe as cartas em cruz. O bar, soturno, não começou a operar mas transcorrem preparativos para a noitada. Soam as seis horas da tarde. O quarto de Amelinha segue no escuro, mas distinguida aí a sua presença. Está sentada na cama, de combinação, e metida em visível prostração. De momento a momento ergue as mãos à cabeça, como se quisesse segurá-la, enquanto os seus movimentos não disfarçam o desespero que a acode.

No outro lado do palco, após instante, Lolita levanta-se. A uma espécie de armário de vidro vai apanhar um vidro de remédio. Serve-se em colher de sopa. Nauseada, treme. Treme e tosse. E cessa de tossir quando bebe a segunda dose. Nessa hora desce até a mesinha, onde estava, e retoma o trato das cartas. De repente a luz do quarto de Amelinha... é estabelecida por Valdelice, que, do interior, veio verificar a razão do silêncio.

Fonte parcial: Jornal O Povo | Teatro Completo de Eduardo Campos, Vol. II, UFC
Endereço: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/t/tres_pecas_escolhidas

O Encontro Marcado, de Fernando SAbino

O Encontro Marcado – Fernando Sabino
Sinopse: Edição de aniversário, totalmente revista e com diversos contos inseridos. Esta é a história de um jovem em desesperada procura de si mesmo e da verdadeira razão de sua vida. Quase absorvido por uma brilhante boêmia intelectual, seu drama interior evolui subterraneamente, expondo os equívocos fundamentais que vinham frustrando sua existência e sufocando sua vocação. O encontro marcado é a história de Fernando Sabino? Sim, mas não se trata de uma autobiografia. É a história atormentada de toda uma geração, naquilo que ela tem de essencialmente dramático. No meio das confusões da vida, procura-se um valor que dê sentido à desconcertante experiência pessoal de quem trava um duelo de morte com a vocação furtiva. História de adolescência e juventude, de prazeres fugidios, desespero, cinismo, desencanto, melancolia, tédio, que se acumulam no espírito do jovem escritor Eduardo Marciano, um homem que amadurece num mundo desorientado. Ele vê seu matrimônio quebrar-se quando já não pode abdicar; por força de sua própria experiência, o suicídio deixa de ser uma solução. Nessa paisagem atormentada, ele deve renunciar a si mesmo, para comparecer ao encontro com uma antiga verdade.
Romance escrito em 3ª pessoa. Existencialista em duas partes.
PERSONAGENS
Eduardo Marciano, narrador
Mauro, Hugo, Amorim e Java - amigos
Antonieta - esposa
Gerlane - namorada
Frei Domingos - amigo Eugênio
Sérgio - amigo
O Encontro Marcado de Fernando Sabino é obra que nos faz passear pelas ruas de Belo Horizonte conhecendo um pouco das gerações que por elas passaram e, de alguma forma, marcaram a cidade. A obra neste tocante é muito feliz..
A história se passa na década de quarenta e tem como protagonista Eduardo Marciano, personagem que serviu de alento a uma juventude que, como ele, tinha um pacto de amizade, angústias existenciais e muitas perguntas por fazer. O incrível dessa história é que ainda hoje ela serve de referência para as gerações que buscam um encontro interior que as tornem mais satisfeitas com a vida.
A PROCURA
A história de Eduardo Marciano nos é contada por um narrador que parece ser muito próximo da personagem, pois acompanha passo a passo a sua trajetória e conta com o domínio de quem conhece tudo sobre o rapaz. É o que chamamos de narrador em terceira pessoa. Esse narrador abre a história propondo um pacto com o leitor, chamando-o a participar do que vai contar: "Que significava o quintal para Eduardo?". Mais do que depressa queremos saber a resposta e, conhecendo - a, queremos saber mais sobre o garoto que parecia ter toda a liberdade para ser feliz e, no entanto, não a tinha. Sua primeira derrota já aparece no início do relato: a galinha de estimação Eduarda, vira o almoço de domingo.
Eduardo era filho único. Fazia de tudo para manter sempre seu lugar de destaque naquela família. era mimado, cheio de vontades e de atrevimentos, estava sempre a testar o limite das pessoas, como qualquer garoto de sua idade. Os pais não sabiam muito bem como lidar com as estranhezas temperamentais do filho, que amolava a empregada, esperneava para ir à escola, chantageava por qualquer coisa. Uma vez descobriu que arranhando o rosto deixava os pais atônitos. Pronto! Por qualquer bobagem machucava-se até sangrar. Era um desespero de menino mimado, prenúncio de um jovem sem limites.
Eduardo sempre precisava de um desafio para atingir alguma conquista. Certa vez, interessou-se por uma colega da escola que era ótima aluna. Foi o prenúncio da paixão, pela menina e pela vontade de ultrapassar seus limites. Estudou até conseguir o primeiro lugar na sala, ao lado de Leda, a garota das notas boas. Alcançando assim o objetivo, Leda deixa de ser o alvo de suas atenções. O episódio deu a Eduardo a medida exata de suas possibilidades. estava, então, com onze anos.
Tinha todas as curiosidades de sua época, como a descoberta de sua sexualidade, por exemplo. Estava sempre atento para as novidades, quem dormia com quem, quem tinha doença, com quem tinha pego...
Era um garoto precoce. Logo cedo destacou-se por seu talento na escrita; inscreveu-se numa maratona intelectual e ganhou o segundo lugar, um prêmio em dinheiro que foi buscar no Rio de Janeiro. Ficou por lá gastando o dinheiro do prêmio até acabar.
"Saiu pela rua, mão no bolso, sentindo que naquele momento começava a viver. Pobreza, fome, miséria - tudo era preciso, para tornar-se escritor. Escrevera um conto em que dizia isso, mandara para um concurso de contos". Ganhou algum dinheiro como premiação e tirou disto uma lição: "Na vida tudo seria assim, a solução se apresentando imediatamente, mal começasse a buscá-la, gozando assim as dificuldades do problema? Na vida tudo lhe seria assim."
Assim foi que Eduardo enfrentou a vida, sempre achando que a solução se apresentaria a ele quando precisasse. A história, porém, vai mostrar o contrário. Eduardo consegue articular com certa facilidade seus interesses, mas nem sempre seu interior está em paz, a busca por esse momento será o fio com que o narrador tecerá a intriga.
Um episódio marcante na vida de Eduardo foi o suicídio de um amigo, o Jadir. Esse rapaz tinha uma família complicada, o pai bebia, a mãe era meio desregrada, a irmã era saliente, o que bastava para que não fosse uma boa companhia aos olhos de dona Stefânia. Um dia antes, Eduardo comentava com Jadir que, às vezes, tinha vontade de morrer. Falaram sobre suicídio, cada um emitiu sua opinião. Eduardo dizia que era covardia, a menos que se fizesse um estrago louco antes, algo que o marcasse na História. Jadir dizia que "- quem quer morrer mesmo, não pensa em nada disso, só pensa em morrer." Acabou dando tiro no peito. Isso naturalmente tirou o sono de Eduardo por muito tempo.
Ao contar a história de Eduardo, o narrador fornece um retrato dos costumes de uma época, em especial o preconceito próprio de uma cidade ainda provinciana em que o sujeito está a mercê de julgamentos preestabelecidos, especialmente em relação ao comportamento de um determinado grupo social. É o que acontece com a interferência de Dona Stefânia no namoro de Eduardo com Letícia, por exemplo. Para ela a menina não é uma boa companhia ao filho. Isso certamente porque não se simpatizou com a liberdade que a mãe dava à garota.
Seu Marciano resolve ficar sócio de um clube, onde certamente o filho terá uma vida mais saudável. Eduardo decide fazer natação e em pouco tempo é um dos melhores em sua categoria. Sentia prazer com as vitórias, "Uma espécie diferente de emoção - a de poder contar consigo mesmo, e de saber-se, numa competição, antecipadamente vencedor." Foi um vitorioso, mas sua obstinação deixava o pai preocupado, sempre às voltas com o estudo de Eduardo. Formar-se era um valor para seu Marciano, uma promessa que Eduardo não cumpriu. No colégio, não foi bom aluno. Era questionador, rebelava-se contra a estrutura da instituição, acabou formando-se aos empurrões. Certa vez o monsenhor do colégio chama-lhe a atenção, após uma briga que teve com o colega Mauro. Eduardo foi atrevido, mas o seu argumento era forte. Não foi expulso, mas Monsenhor Tavares imprimiu-lhe uma pergunta que ele só pôde, de fato, responder muitos anos depois: "Você acredita em Deus?"
Eduardo decide que será escritor. Seu Marciano o apresenta a Toledo, um escritor seu amigo, que será uma espécie de ídolo para o rapaz. por seu intermédio, Eduardo inicia-se na leitura de grandes escritores. Para Toledo, "A arte é uma maneira de ser dentro da vida. Há outras... É uma maneira de se vingar da vida. Assim como se você procurasse atingir o bem negativamente, esgotando todos os caminhos do mal. É preciso ter pulso, é preciso ter estômago." Por toda a trajetória de Eduardo e seus amigos, a voz narrativa evidencia o gosto de uma geração pela leitura e o interesse, em especial de Eduardo, pela palavra escrita e pelas descobertas que se podem fazer com o conhecimento literário. Apesar disso, a luta que Eduardo empreende para ser um escritor não se festiva. ele não consegue escrever o romance que tanto quer.
Chega, afinal, o tempo da formatura do colégio. Uma nova etapa se descortina para Eduardo e seu grupo, um mundo que eles desconhecem está prestes a se impor. Na despedida, Eduardo, Mauro e Eugênio decidem marcar um encontro dali a quinze anos, naquele mesmo lugar. Cada um segue seu destino em busca do grande encontro consigo mesmo.
Eduardo leva uma vida boêmia, o que implica pouco estudo, pouco trabalho e muita aventura. Ele e os amigos estão sempre desafiando o perigo. O mundo está vivendo os reflexos da segunda guerra mundial. A ideologia dos oprimidos é a voz geral que permeia os discursos da rapaziada. Do grupo, Mauro é o rebelde mais entusiasmado. Discursa em lugares públicos, gera polêmicas, uma espécie mais de modismo que de luta política. Eduardo começa a escrever artigos para o jornal e a incorporar um novo grupo de amigos. Juntos, Eduardo, Mauro e Hugo têm uma vida mais ou menos desregrada e audaciosa. Bebem muito desafiam a cidade, buscam um destino. Hugo acaba sendo professor; Mauro, médico. Eduardo arranja um bom emprego público no Rio de Janeiro, por via dos auspícios de seu futuro sogro ministro.
Tudo começa quando conhece Antonieta, num baile no automóvel Clube. Apesar de todas as diferenças entre eles, iniciam um namoro que vai acabar em casamento.
O ENCONTRO
Eduardo não dá conta de nenhum tipo de relacionamento; nada que implique um convívio consegue tirar o rapaz de seu individualismo exagerado. A trajetória de seu casamento serve de pretexto para um questionamento sobre os padrões dessa instituição .Os casais se desagregam, sempre em busca de um conhecimento pessoal que está longe de se alcançar nesse romance. Conforme Eduardo caminha em busca desse encontro, outros desencontros se sucedem na narrativa. Sempre a bebida é o anestésico para os males de Eduardo. Há sempre um pretexto para estar longe do compromisso com Antonieta. Ora são os amigos do bar, ora é Neusa, a vizinha insinuante, ora são os encontros clandestinos com Gerlane, a nova namorada, tudo mostrando a incapacidade de assumir a vida como ela se apresenta. Até o filho com Antonieta lhes escapa. Eduardo parece estar sempre na contramão de seu destino.
O relacionamento do casal, desde o início, aponta para um desencontro. ela é uma moça rica, de pai influente na política. Ele é de uma família de classe média. Ela mora no Rio de Janeiro, a capital. Ele é de Belo Horizonte, uma cidade ainda marcada pelo provincianismo. ela sabe o que quer, ele se apresenta sempre em perspectivas. Não há entre eles brigas ou discussões acirradas, apesar do comportamento irreverente e descompromissado do rapaz; nesse relacionamento percebe-se que Antonieta é o elemento que tenta a harmonia do casamento. Procura compreender o temperamento depressivo de Eduardo e tenta ajudá-lo, mas ele sempre se mostra incapaz de qualquer reflexão. Nessa relação, evidencia-se o crescimento pessoal de Antonieta e a estagnação comportamental de Eduardo, um sujeito sem referências. Ela acaba desistindo da relação e parte para cuidar de sua vida. ele fica perdido em sua nova vida de solteiro e de desencontros.
A trajetória de Eduardo está sempre marcada por alguma perda. Além de sua galinha Eduarda e de seu amigo Jadir, morre seu Marciano, sem mesmo que ele pudesse estar presente. Rodrigo, um amigo do tempo da natação, morre afogado, preso às ferragens do avião que pilotava. Morre seu filho, ainda no ventre de Antonieta. Vítor, casado com Maria Elisa morre tragicamente atropelado. Essa perda também deixa Eduardo muito abalado, principalmente pelo inusitado dos fatos. Uma semana antes do acidente, Vítor esteve com Eduardo e contou-lhe sobre um exame médico que havia feito e que dera um resultado fatal, um câncer, mas que estava errado pois haviam trocado sua radiografia do pulmão com o de outra pessoa. Nesse ínterim, Vítor fez uma promessa, caso conseguisse sarar. Estavam discutindo exatamente se a promessa deveria ser cumprida, mesmo que sua "cura" se desse pela via do engano. Para Eduardo, a morte do amigo foi uma fatalidade. A própria trajetória de Eduardo evidencia uma morte lenta e gradual dos sentimentos e atitudes diante da vida.
Em O Encontro Marcado, acompanhamos o crescimento de Eduardo, e com ele, o da cidade. No entanto, só, em sua volta a Belo Horizonte após a separação é que ele se dá conta disso: "Encontrou a cidade diferente, mudada. Agitação pelas ruas, prédios novos, gente andando para lá e para cá, como se realmente tivesse urgência de ir a qualquer parte."
Há na descoberta de Eduardo, um prenúncio de que seu olhar começa a se voltar para o exterior. Vejamos se isso de fato acontece.
Eduardo percebe a cidade diferente, sem talvez o encanto de sua juventude. encontra os amigos, Mauro está casado e Hugo parece feliz como professor. Continua um intelectual, cada vez mais se dedica ao estudo acadêmico, vive rodeado dos alunos. Eduardo comparece ao encontro marcado e encontra o ginásio em férias. Os dois amigos não compareceram. "Saiu da cidade como de um cemitério".
Na volta, faz uma parada em Juiz de fora, revê lugares e pessoas que já não dizem mais nada para ele e segue de volta ao Rio. Começa sua peregrinação interior, na tentativa de se encontrar. aos poucos, vai filtrando a vida e reconstituindo o fio de sua identidade: "Agora via em volta que seu mundo era dos outros também, carregando cada qual a sua cruz _ pobres criaturas de Deus. E como eram simpáticas, essas criaturas. Nada de sordidez que via antes em cada olhar, da miséria em cada gesto, o cotidiano sem mistério, a surpresa adivinhada em cada corpo, o segredo assassinado em cada boca."
Reencontra-se com Eugênio, agora frei Domingos. Passa a visitá-lo no convento, onde parece sentir um pouco de alento. Perambula pela cidade, revê Neusa, que diz estar esperando um filho seu. Eduardo não consegue assumir essa nova situação e a moça decide não ter o filho. Aos poucos, Eduardo vai se desligando das relações com as pessoas e a cidade. Toma uma atitude, afinal, a seu favor. Desliga-se do emprego, deixando assim, a sua vaga para o colega Misael. Dá seus livros para o filho desse amigo, rapaz interessado em literatura e deslumbrado com Eduardo, como certa vez, ele o fora com Toledo. Desfaz-se do apartamento e empreende uma grande viagem... na busca e compreensão de si mesmo.

Fonte: http://www.livrosparatodos.net/livros-downloads/o-encontro-marcado.html

Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector

Felicidade clandestina (Livro), de Clarice Lispector
Este livro nasceu de um convite feito a Clarice Lispector, em 1967, para escrever semanalmente no Jornal do Brasil. Seriam crônicas, mas ela mesma declarou: “Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica coisa nenhuma. Isto é apenas. Não entra em gêneros. Gêneros não me interessam mais.”

No entanto, a obra é considerada como livro de contos. Além dos publicados no Jornal do Brasil, acrescentaram-se outros escritos em épocas diversas da vida da autora. Neles há muito de autobiográfico: recordações da infância (a filha do livreiro de “Felicidade Clandestina” existiu; o professor de “Desastres de Sofia” percebeu o tesouro da futura escritora.).

Escritas em primeira pessoa, neste que poderia ser considerado um dos livros de cunho mais autobiográfico da autora, as narrativas resgatam, de uma perspectiva memorialista da mulher adulta, a arguta ingenuidade de seus pensamentos e sentimentos aos oito e nove anos de idade, quando moradora da cidade do Recife, por cujas ruas perambulava, aos saltos, enchendo-as da memória da sua passagem. Esse material, buscado a uma época tenra de sua história pessoal, é utilizado para suas reflexões sobre a vida, a atividade literária e o exercício de um feminismo místico que se torna a marca de seu estilo.

Esta obra reúne 25 contos que tematizam a adolescência, a infância, e a família, sem deixar, em momento algum de se referir as angústias da alma, tal como é próprio da autora.

Os textos não diferem da orientação geral da ficção de Clarice Lispector. Ela pratica a exacerbação do momento interior dos personagens, a ponto de a própria subjetividade entrar em crise. O espírito deles viaja nas asas da memória e da auto-análise. Não se trata, porém, de sondagens psicológicas sentimentais egocêntricas. A inquietação íntima dos personagens se concentra na busca da própria identificação num cotidiano monótono e vazio. As camadas mais profundas da consciência humana são removidas pela autora em busca do significado da existência. Há portanto o encontro da psicologia com a metafísica: conhecer-se para ser.

Clarice Lispector emprega o processo narrativo do fluxo da consciência, que é o rompimento dos limites de espaço e de tempo. O pensamento fica solto. Pequenos fatos exteriores provocam uma longa viagem abstrata das idéias, sem se basear numa estrutura seqüencial da narração.

Ela faz os personagens viverem o processo chamado de “epifania”, ou seja, revelação. Em outras palavras, de repente, diante de ocorrências mínimas, o personagem se descobre e vê revelada uma realidade mais profunda. Muitas vezes, ele mesmo não consegue perceber com clareza que realidade é essa, porém sua vida ou sua visão mudam.

Exemplos dessas situações epifânicas: a menina que se torna “amante” do livro; os dois amigos que se separam para avivarem a amizade sincera; o menino míope que descobre a paixão no amor; a menina que se sente valorizada quando o folião lhe entorna confete na cabeça; a mulher que percebe sua real situação pisando num rato morto; a menina ruiva que sente o peso da solidão quando o cachorro se vai; a contemplação de um ovo que faz a narrador refletir sobre o mistério profundo da vida; a menina formal que se vê criança diante de um pintinho e reage matando-o; a mulher que, olhando o dente quebrado, confirma a falta de sentido da vida; a visão do inseto esperança que leva a mulher a se questionar sobre o nada; a macaquinha que induz o filho a perceber seu amor pela mãe; a menina que faz o professor sorrir e, assim, descobre sua falta de importância; a criada que é oportunidade de a patroa entender um ser humano; os adolescentes que diante da casa velha concluem não serem pessoas especiais; o menino que se descobre homem ao “beijar” a estátua da mulher-chafariz...

Os vôos metafísicos de Clarice Lispector partem, geralmente, de cenas domésticas ou, na visão estereotipada masculina, sem importância. Sua condição de mulher a faz muito sensível aos problemas das pessoas carentes. A marca registrada de seus personagens é serem tipos sem relevância aos olhos da sociedade (meninas, velhas, adolescentes) mas ricos em sua interioridade.

Ainda integra a característica de mulher-autora a visão do nascimento da mulher na menina. São numerosas as personagens-meninas que, de uma forma ou de outra, se tornam adultas a partir de experiências aparentemente corriqueiras.

Toda essa exaustiva pequisa do interior do ser humano – a subjetividade procurando se orientar envolvida pela objetividade – pode passar despercebida ao leitor desatento. Isso porque os textos são muito pobres de fatos, aliás, propositalmente pobres. Cenas comuns, desenhadas sem rebuscamentos, mas com bastante precisão de detalhes, podem esconder a profundidade do conteúdo analítico. As palavras não são raras, os aspectos descritos e narrados parecem irrelevantes, a sintaxe não se complica. O campo da linguagem fica livre para o leitor acompanhar os pensamentos que movem as intenções dos personagens à procura de se ajustarem com eles mesmos.

ENREDOS

FELICIDADE CLANDESTINA

Neste conto a narradora recorda sua infância no Recife.
Felicidade clandestina (Conto da obra Felicidade clandestina), de Clarice Lispector
Neste conto a narradora recorda sua infância no Recife.

A introdução do conto apresenta as duas protagonistas da narrativa, salientando os aspectos negativos de uma, que serão bem mais evidentes que os da outra: “Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme...” Mas, apesar de todos esses defeitos, ela era agraciada com algo que a tornava privilegiada: “possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria”. E isto a tornava superior a todas suas amigas. A outra que apesar de ser como as demais meninas: “bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres”, não tem acesso aos livros. Por isso, ela, que é a narradora em 1ª pessoa, relata a sua experiência de amá-los e não poder desfrutá-los.

A filha do dono da livraria não aproveitava os livros e, segundo a narradora, nem as outras meninas, uma vez que ela, até mesmo nos aniversários, não tinha a gentileza de dar um livro de presente: “em vez de pelo menos um livrinho barato”. Nesse ponto chegava a ser irônica, pois seu presente favorito para as outras eram cartões postais da loja do pai, como para mostrar-lhes que o mundo dos livros, para elas, era inacessível, sempre ficariam distantes dele, enquanto ela detinha o poder de possuí-los.

Por isso, ela vivia pedindo-os emprestados àquela colega filha de dono de livraria. Essa colega não valorizava a leitura e inconscientemente se sentia inferior às outras, sobretudo à narradora.

Em relação a esse comportamento da menina que lhe dava cartões postais da livraria do pai, a narradora era indignada: “ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas”. Por entender que possuir livros significava ter poder sobre os que não tinham, a filha do dono da livraria, resolveu que às outras não daria esse gostinho de querer mudar esta situação. Pois é preciso entender que para essas meninas leitoras o seu adentramento na ambiente dos livros seria uma opção pela liberdade “a ponto de entendê-lo enquanto relação amorosa”.

Essa menina era mesmo cruel e com a narradora exerceu com calma ferocidade o seu sadismo, tanto que a pobre nem percebia, tal era a sua ânsia de ler: “continuava a implorar-lhe emprestado os livros que ela não lia”. Até que chegou o dia em que começou a exercer sobre a outra uma tortura chinesa, a informou que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, que para esta “era um livro grosso, [...], era um livro para se ficar vivendo, comendo-o, dormindo-o”.

para a nossa narradora, os livros lhe davam “um lar permanente”, e um lar que ele “podia habitar exatamente como queria, a qualquer momento.” Porém, para ela, o livro estava longe de suas posses. Então, foi logo pedindo emprestado o tal, a outra pediu que passasse por sua casa no dia seguinte e ela o emprestaria.

Para a narradora, o livro é o objeto do seu desejo e para este não há limites: “Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam”. Ao chegar o tão esperado dia seguinte, foi à casa da outra “literalmente correndo”.

Mal sabia a ingênua menina que a colega tinha um plano diabólico. A dona do livro, quando a narradora chegou até sua casa e pediu-o, disse que o havia emprestado à outra menina, que ela voltasse no dia seguinte. Ficou boquiaberta, mas seu desejo era tal que, a esperança invadiu novamente seu ser e ela andou pelas ruas pulando, sonhando: “guiava-me a promessa do livro”. No dia seguinte, outra desculpa, o livro ainda não havia sido devolvido. E assim se seguiram os dias. O terror por não ter o livro para ler e a outra se divertindo em alimentar uma esperança era uma cena digna de pena: “eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer”.

Então todos os dias, invariavelmente, ela passava na casa e o livro não aparecia, sob a alegação de que já fora emprestado. Esse suplício durou muito tempo. A sua relação com o livro é tal, que todo esse sofrimento começou a afetar o seu físico: “eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados”. Tudo isso porque o ato da leitura para ela era uma necessidade, padecia com o não-ler, tinha uma fome que precisava ser saciada, pela chance que a outra poderia lhe dar, ao emprestar-lhe o livro tão esperado.

Chegou finalmente o dia da redenção da narradora, quando todos seus males seriam sarados. Certo dia, a mãe da colega cruel interveio na conversa das duas e descobriu que sua filha estava enganando a outra menina: “mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!”

E essa descoberta não era a pior, mas sim a descoberta, horrorizada, da filha que tinha. A narradora seria agora agraciada pelo tão almejado objeto do desejo: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser”. Esse “por quanto tempo quiser” significava muito mais do que dar-lhe o livro, ela teria posse sobre o seu objeto do desejo. Toda a sua espera, sua insistência, finalmente era recompensada.

Para a narradora foi impossível descrever-nos o que sucedeu assim que recebeu o livro na mão. Ela só lembrava que “o segurava firme com as duas mãos, comprimindo contra o peito.” Imaginamos que agiu assim por temer que algo ou alguém a separasse dele. Esqueceu até mesmo quanto tempo levou até chegar à casa. Porém, isso não importava, o que valia a pena era sentir que o livro estava com ela: “meu peito estava quente, meu coração pensativo”. Isso indica um sentido diferente para a leitura.

Para o leitor do conto, a menina que tanto queria o livro ao conseguir possuí-lo, devorá-lo-ia em pouco tempo. Mas não foi isso o que aconteceu. Ela chegou em casa e não começou a ler: “fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter”. Algum tempo depois, leu algumas partes, que considerou maravilhosas, fechou-o novamente, indo fazer outras coisas, fingia que não sabia onde guardava o livro, achava-o, lia novamente.

Essa foi a felicidade clandestina da menina. Fazia questão de “esquecer” que estava com o livro para depois ter a “surpresa” de achá-lo.

A narradora “criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade”. A felicidade em ter acesso aos livros, à leitura, que para ela era clandestina, pois não possuía livros e nem condições financeiras que possibilitassem um maior contato com eles. Esta “felicidade clandestina” significa que ela está muito feliz por realizar algo para ela ilegal, pois o fato de possuir um livro, era, muitas vezes, na sociedade antiga, um privilégio dos mais favorecidos economicamente e continua sendo até hoje. Assim, podemos afirmar que a personagem narradora quebrou os paradigmas dessa diferença social, e por isso, cometeu grave delito, com sua insistência e amor aos livros. Conseguiu ter acesso ao seu objeto desejado.

Ao realizar algo proibido, a narradora sabe que deveria ter orgulho, pois conseguiu alcançar seu objetivo, e pudor, pois poderia perder o que conseguiu, além disso, estava vivendo no ar. Agora ela “não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu ‘amante’”.

UMA AMIZADE SINCERA

Neste conto, a história incomoda porque obriga ver a amizade como um desconforto: o cotidiano de dois amigos, as confidências, a partilha das coisas banais da convivência são um fardo que ambos suportam pela amizade.

Uma amizade sincera (Conto das obras Felicidade clandestina e A legião estrangeira), de Clarice Lispector
Neste conto, a história incomoda porque obriga ver a amizade como um desconforto: o cotidiano de dois amigos, as confidências, a partilha das coisas banais da convivência são um fardo que ambos suportam pela amizade. Os momentos mais tipicamente valorizados na amizade convencional, a confidência e a solidariedade, são marcados negativamente pelo narrador, que os relata com uma carga latente de ironia; os momentos ruis, aqueles que normalmente se evitam, como o esgotamento de ter o que dizer ao outro e a presença incômoda, quase indesejada, a denunciar a solidão, são, por seu turno, os mais valorizados.

O enredo funciona de modo inverso ao do conto "Os obedientes": a amizade sincera é aquela que não pode continuar sendo; a perda, a despedida, não é resultado de desafeto, mas, ao contrário, conseqüência de um afeto intenso. O sentimento de doação e cumplicidade de dois amigos é tal que empresta à amizade um ar de homossexualismo, que o narrador faz questão de negar, contando o episódio em que fica noivo. Do ponto de vista de senso comum, esta seria a amizade que "não deu certo".

Uma leitura tranqüilizadora deste conto tende a negar a afirmação final do narrador de que eram "amigos sinceros". Esta "amizade" seria exagerada, muito exigente e egoísta ("se eles cedessem cada qual um pouquinho, dava pra continuar amigos").

Os dois amigos não são nomeados. O tempo é cronológico, não determinado. A narrativa em primeira pessoa, com onisciência parcial, segue a estrutura tradicional do enredo (início – meio – fim) e nos é contada depois dos fatos terem acontecidos. O espeço é urbano, não determinado.

Este conto tem duas características fundamentais: a originalidade do estilo e a profundidade psicológica no enfoque de temas aparentemente banais. A linha condutora é a estória de uma amizade que vai se desgastando com o tempo e a convivência acentuada. Através da consciência do narrador, é revelada ao leitor uma dimensão humana profunda e poética, de forma simples.

A narrativa, cheia de digressões (que fazem lembrar o estilo machadiano), vai além da descrição realista de um cotidiano inexpressivo, questiona os valores universais do ser humano. Seu estilo caracteriza-se pela ausência de retórica (discursos eloqüentes) e sem melodramas (impactos emocionais), o interior das personagens vai aparecendo e sensibilizando (é o que chamamos de epifânia).

O narrador conheceu um colega de escola no último ano de estudo. Desde então, tornaram-se amigos inseparáveis. Quando não estavam conversando pessoalmente, falavam-se pelo telefone.

A partir de certo momento, os assuntos começaram a faltar. Às vezes, marcavam encontro e, juntos, não tinham sobre o que conversar. Calados, logo logo se despediam e, ao chegar cada qual em sua casa, a solidão batia mais forte.

A família do narrador mudou-se para São Paulo e ele, então, ficou no apartamento dos pais. O amigo morava sozinho, pois seus parentes ficaram no Piauí. A convite do outro, dividiram o mesmo apartamento. Ficaram alegres, porém instalou-se a falta de assunto. Só tinham amizade e mais nada. Tentaram organizar umas farras no apartamento, contudo a vizinhança reclamou.

As férias foram angustiantes. A solidão de um ao lado do outro era incômoda demais. Quando o amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura, o narrador fez disso pretexto para uma intensa movimentação, assumiu cuidar de toda a documentação exigida. No fim do dia os dois tinham assunto, pois exageravam as palavras no comentário de detalhes de pouca importância. Foi então que o narrador entendeu por que os namorados se presenteiam, por que marido e mulher cuidam um do outro e por que as mães multiplicam o zelo pelos filhos. É para terem oportunidade de ceder a alma um ao outro.

Resolvida a questão com a Prefeitura, os dois arrumaram falsas justificativas de viajarem sós para estar com as respectivas famílias. Sabiam que nunca mais se reveriam. “Mais que isso", conclui o narrador, "que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.”

MIOPIA PROGRESSIVA

O narrador conta sobre um menino que usava óculos e sobre sua relação com os familiares, que agiam segundo suas falas mais ou menos originais.

O menino era tido como inteligente e astuto em casa. O que ele dizia provocava olhares mútuos de confirmação de sua superioridade. Então ele começou a compreender que dependia dele a boa convivência dos membros da família. Quando não era ele o centro das atenções, eles se desentendiam.

Para apoderar-se da chave de sua inteligência, o menino costumava repetir seus ditos; mas ninguém prestava mais atenção. Essa instabilidade dos familiares passou para ele, que adquiriu, então, um hábito mantido o resto da vida: pestanejava e franzia o nariz, deslocando os óculos que usava por causa da miopia. Toda vez que desenvolvia esse cacoete, era sinal de que estava interiormente tendo noção de sua instabilidade.

Iria passar uma semana na casa de uma prima que não tinha filhos e que adorava crianças. Passou os dias preparando-se, criando expectativas, imaginando o “dia inteiro” que passaria com ela e o amor inteiro que receberia. Na semana que antecedeu a esperada visita, a cabeça do menino ferveu: como se apresentaria diante da prima? Inteligente? Bem comportado? Quem sabe até como palhaço? Triste talvez? Sentia até aperto no estômago quando antecipava a situação de que ia ser amado sem seleção, sem escolha, o que representava uma estabilidade ameaçadora. Aos poucos, suas preocupações passaram a ser outras: que elementos ele daria à prima para ela ter certeza de quem ele era? Como encararia o amor que ela nutria por ele?

Ao entrar na casa da prima, duas surpresas o desnortearam (ele se desnorteava com surpresas): a prima tinha um dente de ouro no lado esquerdo da boca; ela o recebeu com naturalidade, sem evidenciar amá-lo.

Já que suas previsões foram por terra, resolveu brincar de não ser nada. No entanto, à medida que o dia avançava, o amor da prima se evidenciou. Era um amor sem gravidez: ela queria que ele tivesse nascido dela; por isso demonstrava o amor estável, a estabilidade do desejo irrealizável. Amor que incluía paixão, a paixão pelo impossível.

Quando o menino descobriu o ingrediente da paixão no amor, ele perdeu a miopia e viu o mundo claramente. Foi como se ele tivesse tirado os óculos e a própria miopia o fizesse enxergar.

Desde então, talvez, ele adquiriu o novo hábito de tirar os óculos a pretexto de limpá-los “e, sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego.”

A forma de amá-lo era deixá-lo viver e ele sentiu-se amado, e “foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo”, ou “a miopia mesmo é que o fizesse enxergar”.

RESTOS DO CARNAVAL

Em “Restos do Carnaval” o procedimento narrativo é o mesmo que em "Felicidade Clandestina": a escritora adulta rememora um episódio da sua infância passada nas ruas e praças de Recife, que encontravam “sua razão de ser” no Carnaval.

Restos do Carnaval (Conto da obra Felicidade clandestina), de Clarice Lispector
Em “Restos do Carnaval” o procedimento narrativo é o mesmo que em "Felicidade Clandestina": a escritora adulta rememora um episódio da sua infância passada nas ruas e praças de Recife, que encontravam “sua razão de ser” no Carnaval. O episódio tem uma carga emocional muito forte, porque expressa o conflito vivido pela menina pequena, cercada pela alegria da festa alheia, a festa de rua, a festa de todos, a festa em si mesma, e o peso de um drama familiar, nota destoante de uma tragédia íntima, ameaçadora e terrível para qualquer criança: a doença da mãe, que piora nesta data, e que depois viria a falecer. O contraste é gritante, e aparece até no título: “restos”. Restos de um carnaval que, por qualquer motivo, a escritora relembra como “as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete”, e que vem a se tornar alegoria de outras situações semelhantes na vida, quando a própria vida em festa parece rir, cruelmente, do seu luto pessoal.

A história, porém, não ocorre numa quarta-feira. O carnaval está apenas começando. A atenção da família se concentrava na doença da mãe; por isso, se permitia pouca participação da menina na folia: ficava até onze horas da noite, ao pé da escada do sobrado onde morava, olhando os outros se divertirem. Passava o carnaval inteiro economizando o lança-perfume e o saco de confetes que ganhava. Ela não se fantasiava; porém, cheia de felicidade, se assustava com os mascarados e até conversava com alguns deles.

Aos oito anos, houve um carnaval diferente. A mãe de uma amiguinha fantasiou a filha de rosa, usando papel crepom; com as sobras, fez a mesma fantasia para ela. Os cabelos ficariam enrolados e lhe passariam baton e rouge.

Desde cedo, ela viveu a expectativa do momento de vestir a fantasia; a euforia era tanta que até superou o orgulho ferido de ganhar um presente porque sobrou papel.

Toda a dor que a autora adulta revela pela consciência do contraste irônico da situação, para ela imperdoável (“Muitas coisas que me aconteceram tão piores que esta, eu já perdoei. No entanto esta não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso”), inexiste na atitude da criança descrita. Completamente alheia, ou alheando-se inconscientemente do seu drama pessoal, a menina não pensa na mãe a sofrer. Não pensa na morte que se aproxima, e a agitação da família em torno da mãe doente é ignorada em função da fantasia. A fantasia real, a roupa de papel crepom cor-de-rosa, que pretendia imitar as pétalas de uma flor; e a fantasia abstrata, a realização de um sonho: “pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma”, que revela o desejo de fuga daquela situação angustiante demais para ser apreendida pela criança, e talvez da própria vida real, sentida em seu limite e estreiteza.

O clímax do conto acontece em meio à agitação da menina que, preparada para a festa, é enviada depressa à farmácia para comprar remédio para a mãe, que sofre uma súbita piora.

Ela vai, correndo, mas acompanhada de muda revolta e indignação pela coincidência da tragédia que se atravessa no caminho da sua alegria, sentimentos que perduram para além da infância, sobrevivendo no espírito da mulher adulta que relembra o fato. Nenhuma palavra de simpatia, preocupação ou dor é proferida com relação à mãe, nem mesmo pela adulta que a rememora. Clarice menciona apenas a lembrança de algum remorso da menina pela sua “fome de êxtase”, que ameaçava voltar em meio à festa da qual se sentia impedida de participar. De maneira algo egoísta, o que dói é a quebra da magia da criança, que começava a se acreditar uma Rosa, satisfazendo seu “sonho intenso de ser uma moça”. O que dói é a súbita deserotização da menina, que finalmente teria realizado o seu sonho de transformação em mulher, com a inesperada roupa que completaria a pintura forte nos lábios, o ruge nas faces e os cabelos frisados pela irmã, a seu pedido, nos outros Carnavais. O que dói, e o que a faz relembrar este episódio, é o desencanto vivido: “não era mais uma Rosa, era um palhaço pensativo de lábios encarnados”.

Mais tarde, acalmada a crise da mãe, ela saiu com a fantasia completa, contudo o encantamento já não existia mais. Como poderia ela se divertir, se a mãe estava mal?

O “final feliz” surge como um anti-clímax, aí colocado para impedir, talvez, que a condenação da mãe doente pela criança frustrada em seus desejos apareça como o único desfecho cruel dessa história. Daí a menção ao menino de doze anos, que cobre de confete os cabelos “já lisos” da menina, fazendo-a sentir-se, por um instante neste dia horrível, uma “mulherzinha” de oito anos: uma Rosa.

O GRANDE PASSEIO

Uma velhinha pobre andava pelas ruas. Era apelidada de Mocinha. Havia sido casada, tivera dois filhos: todos morreram e ela ficou sozinha.

Depois de dormir em vários lugares, Mocinha acabou, não se sabia por que, passando a dormir sempre nos fundos de uma casa grande no bairro Botafogo. Cedinho ela saía “passeando”. Na maior parte do tempo, a família moradora da casa se esquecia dela.

Certo dia, a família achou que Mocinha já estava lá por muito tempo. Resolveram levá-la para Petrópolis, entregá-la na casa de uma cunhada alemã. Um filho da casa, com a namorada e as duas irmãs, foi passar um fim-de-semana lá e levou Mocinha.

Na noite anterior, a velhinha não dormiu, ansiosa por causa do passeio e da mudança de vida. Como se fossem flashes descontínuos, vinham-lhe à cabeça pedaços de recordações de sua vida no Maranhão: a morte do filho Rafael atropelado por um bonde; a morte da filha Maria Rosa, de parto; o marido, contínuo de uma repartição, sempre em manga de camisa, ela não conseguia se lembrar do paletó... Só conseguiu dormir de madrugada. Acordaram-na cedo e a acomodaram no carro.

A viagem transcorreu para Mocinha entre cochilos e novos flashes de memória com cenas entrecortadas da vida passada. Foi deixada perto da casa do irmão do rapaz que dirigia, Arnaldo; indicaram-lhe o caminho e recomendaram que dissesse que não podia mais ficar na outra casa, que Arnaldo a recebesse, que ela poderia até tomar conta do filho.

A alemã, mulher de Arnaldo, estava dando comida ao filho; deixou Mocinha sentada sem lhe oferecer alimento, aguardando o marido. Este veio, confabulou com a mulher e disse a Mocinha que não poderia ficar com ela. Deu-lhe um pouco de dinheiro para que tomasse um trem e voltasse para a casa de Botafogo. Ela agradeceu e saiu pela rua. Parou para tomar um pouco de água num chafariz e continuou andando, sentindo um peso no estômago e alguns reflexos pelo corpo, como se fossem luzes. A estrada subia muito. “A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde. Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça no tronco de árvore e morreu.”

COME, MEU FILHO

A mãe dá comida ao filho Paulinho e ele fica puxando conversa para evitar ter que comer. Os assuntos que ele traz são desconexos, simples pretextos para não comer. Por exemplo: o mundo é chato e não redondo; o pepino parece “inreal”, faz barulho de vidro quando a gente mastiga; quem teria inventado o feijão com arroz; o sorvete é bom quando o gosto é igual à cor... A mãe, paciente, vai respondendo laconicamente e insistindo em que Paulinho não converse tanto e coma.

No fim, ele pergunta se é verdade que adivinhou que ela o olha daquele jeito não é para ele comer, mas porque gosta dele. A mãe diz que ele adivinhou sim, mas torna a insistir em que ele coma. Paulinho retruca: “ – Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não pensar só em comida, mas você vai e não esquece”.

PERDOANDO DEUS

Este texto de Clarice externa, com sua peculiaridade de expressão, uma experiência interior de grande impacto à protagonista.
Perdoando Deus (Conto da obra Felicidade clandestina), de Clarice Lispector
Este texto de Clarice externa, com sua peculiaridade de expressão, uma experiência interior de grande impacto à protagonista.

O espaço da rua volta a se transformar em local de perigo, no qual a personagem é forçada a reconhecer sua situação de desamparo. No início da narrativa, uma mulher descreve, em primeira pessoa, a prazerosa experiência de caminhar livremente pela Zona Sul do Rio de Janeiro, vivenciando a harmonia com a paisagem urbana e a plenitude de um sentimento maternal totalizante:

Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que (...) estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. (...) Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo.

Esse pacto de comunhão e proteção ideais é rompido bruscamente quando a mulher, logo em seguida, tropeça em um rato morto, um rato ruivo morto (a escolha da cor pode ser pela aliteração, pois, em Clarice, quando ocorre o momento do “transe”, ou da percepção aguçada, a linguagem se torna densamente poética). Espanta-se: "Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, (...)". Corre espavorida. Revolta-se. E pensa em vingar-se de Deus. E aí, Deus confunde-se com a natureza: "Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto."

A brutalidade da natureza é usada como metáfora de Deus. Eis, então, que ocorre um processo de auto-conhecimento, pelo reconhecimento das próprias fraquezas, limitações, e a reconciliação com Deus, mas não com o Deus perfeito, sereno e distante do início. É um processo de quitação, incondicional, portanto baseado no espírito de renúncia, sem prerrogativas, agora com uma visão mais humana de Deus (e de si mesma). Só então ocorre o amor a Deus. Assim o amor, antes interditado, pode ser dirigido e ofertado.

Confrontando-se com a sua vulnerabilidade, a mulher vive a desagregação e a desordem íntima, a que se segue a vontade de vingança contra a autoridade onipotente que a ferira com sua “grosseria”. Entretanto, a personagem vislumbra a possibilidade de transformar a dimensão trágica de seu sofrimento em sabedoria – possibilidade que já se anuncia no modo verbal presente no título do conto. E o texto termina com o reconhecimento da alteridade, do “mundo que também é rato”.

Como na maioria dos contos de Clarice, o enredo de "Perdoando Deus" é desossado, inacentuado, e quando eventualmente ocorre, é composto não de uma trama, mas de um incidente que dispara o transe psicológico, subjetivo e estético. Neste conto o que se ressalta é a função do incidente como a senha para o transe e a imersão no estado de hiper-sensibilidade poética.

Concluiu a narradora então que a sensação tão solene que tivera era falsa, estivera amando um mundo que não existe (“no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. E porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele.(...) Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho da minha natureza?”)

Finalmente, ficou esclarecido na mente dela que estava querendo amar a um Deus só porque ela não se aceitava. Ela estaria amando um Deus que seria seu contraste, esse Deus seria apenas um modo de ela se acusar. “Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe”.

Estar caminhando pela praia, representa seu contato mais subjetivo com o mundo, com a natureza, de forma singela e espontânea. Deixa-se levar pelo movimento que arrebata todos os seus sentidos, provocando-lhe uma experiência inédita integralizante. Por uns momentos sente-se parte do cosmo, e nesta percepção de Unidade vive a consciência de Deus, e sente por este Ser um carinho indescritível que a envolve e consome todos os espaços de sua consciência.

Neste estado de ser, vive momentos em que se desliga de toda materialidade, experimentando a suspensão dos limites impostos por ela, e nesta expansão do todo sua relação com Deus é atípica, misto de ternura, força criadora e entrega como parte da unicidade que o simples caminhar lhe proporciona.

Ao pisar num rato morto, a personagem do texto assusta-se e reage com infantilidade, num pavor desmedido.

A figura grotesca do repugnante animal, morto, a desconecta de imediato do mundo da essência, das idéias e da emoção mais pura, colocando-a em contato direto e sem possibilidade de fuga, com a realidade concreta e factual.

A rejeição que lhe provoca tal situação é tanta que se revolta com Deus. O mesmo Deus que segundos antes lhe despertara sentimentos dos mais nobres, belos e sutis.

O que fazia algo tão deplorável em meio a tanta beleza e harmonia?

Sua primeira reação é negar Deus, rejeitá-lo, culpá-lo, ignorá-lo.

O rato tem então a função de colocá-la frente ao seu próprio julgamento, onde a idéia e o fato se entrelaçam e formam a mais concreta realidade.

Sente-se desnuda de justificativas. Não há como fugir nem disfarçar.

Percebe que ao deparar com sua própria fraqueza, essa mesma fraqueza cria a rejeição, como para se proteger. Talvez num movimento que busque culpar alguém pela desordem, pelo aspecto feio, pela falha de sua própria vida.

Num súbito impulso conclui que a sensação que experimentou é falsa. Não existia. Uma lucidez dolorosa a envolve e percebe com clareza como a felicidade, em sua plenitude, pode ser algo alienante.

Enfrenta a verdade crua, sem possibilidade dela se apartar. A ilusão deste mundo fictício embriaga e causa um torpor que a mantém afastada da realidade.

Por um tempo questiona-se sobre sua própria identidade, considerando a possibilidade de ser ela própria uma mera ilusão.

Nesse raciocínio vai delineando o provável equívoco em sua maneira de amar. E não pode fugir de uma questão vital: Como amar a essência real do mundo se não ama sua própria realidade do ser? Se não a percebe com clareza?

Ao ver-se negando uma parte de si mesma compreende a fragilidade das premissas em que baseia seu contato com a vida.

Vai conjeturando, perseguindo a lógica que lhe escapa, ate que se dá conta de que talvez, Deus seja apenas e tão somente uma criação sua; uma projeção daquilo que não aceita em si mesma.

Termina sua caminhada num silencio quase mórbido, envolto em sentimentos de tristeza e quietude, uma vez que fixa sua atenção ao movimento interior de seus pensamentos.

Conclui neste estado de espírito: “Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe”.

Fonte parcial: Fátima Cristina Dias Rocha - UERJ (Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos)

TENTAÇÃO

É uma cena lírica. Uma menina ruiva estava sentada na calçada, triste e soluçante.

Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão de Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset ruivo.

A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.

Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro.

Que foi que disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú.

Mas ambos eram comprometidos.

Ela com sua infância impossível, o centro de sua inocência que só se abriria quando ela fosse mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.

A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com os olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.

Mas ele foi mais forte que ela. Nem só uma vez olhou para trás.

Leia o conto na íntegra:

Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.

Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.

Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.

Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.

A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.

Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo. Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.

Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos.

No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes do Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.

Mas ambos eram comprometidos.

Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.

A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.

Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.

O OVO E A GALINHA

O conto "O ovo e a Galinha" se parece mais com uma dissertação sobre o mistério do ovo. Mas sendo algo entre a crônica e o conto ou um simples texto sem classificação, pouco tem daquela organização que encontramos no poema "O Ovo da Galinha", de João Cabral de Melo Neto
O ovo e a galinha (Conto das obras Felicidade clandestina e A legião estrangeira), de Clarice Lispector
O conto "O ovo e a Galinha" se parece mais com uma dissertação sobre o mistério do ovo. Mas sendo algo entre a crônica e o conto ou um simples texto sem classificação, pouco tem daquela organização que encontramos no poema "O Ovo da Galinha", de João Cabral de Melo Neto.

"O ovo e a galinha" começa com uma frase em que se identifica o tempo, o espaço e o narrador da história: "De manhã na cozinha sobre a mesa vejo um ovo".

Em seguida todos esses referenciais começam a ser desmantelados: "Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios?"

O assunto inicial, o ovo, vai desdobrando-se e multiplicando-se com o desenrolar do texto. Definido como "tratado poético sobre o olhar", pelo crítico José Miguel Wisnik, ou como "meditação", por Benedito Nunes, "O ovo e a galinha" é um texto que alarga os limites da obra literária e, embora apresente os elementos básicos de uma narrativa, faz pensar sobre o que é preciso exatamente para contar uma história, coisa que de fato não ocorre em seu caso.

O ovo, tema do conto, parece também um subterfúgio. Às vezes parece ser a representação da vida, outras da liberdade, ou a verdade, ou a opressão, ou algo para desviar a atenção da essência, ou a própria essência. Após muitas considerações, algumas lógicas outras alucinantes e subjetivas, sobre o ovo, a narradora passa a dizer de um “eles” indeterminado, que manipula, que permite, que sugere, que instrui, que obriga, mas que não consegue eliminar totalmente a vontade e a consciência.

A palavra, no conto, funciona como disfarce da realidade. Muitas e controvertidas palavras geram contradições que escondem a verdade.

Este texto reforça uma das características nas obras de Clarice Lispector que é a analise introspectiva, ou seja, é uma narrativa baseada na memória, na emoção, isto é, no fluxo da consciência do narrador. Como já citado, esta narrativa rompe com a linearidade, não fica clara a estrutura de início, meio, fim.

Com a frase inicial da narrativa, “de manhã, na cozinha, sobre a mesa vejo um ovo”, Clarice faz uma relação com o início do dia e o início da vida. O ovo representa o narrador, o presente, o passado e o futuro. Isto é o tempo percorrido, isto é o ciclo da vida.

“Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo”. Nesta análise o narrador compara o ovo com o infinito, sem começo, nem fim.

No próximo parágrafo veremos que Clarice diz que ver o ovo é impossível, somente a máquina vê o ovo. O cão não vê o ovo. O amor pelo ovo também não se sente. Mas é super sensível. A gente não sabe que ama o ovo, mas já fui depositária do ovo; quando morri tiraram o ovo de mim e só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é obvio. No próximo parágrafo Clarice fala em entendimento.

Diz: "ao ovo dedico a nação chinesa (fazendo uma referência à superpopulação)". Depois diz que "o ovo é uma coisa suspensa (como o mundo); olho o ovo para não quebrá-lo. Tomo cuidado de não entendê-lo. Entendê-lo não é modo de vê-lo. O que não sei do ovo é que é realmente imortal. A lua é habitada por ovos. O que é ovo? É uma exteriorização. É dar-se; quem vê mais do que a superfície esta com fome. O ovo é a alma da galinha. Ovo um projétil parado. Ovo é ovo no espaço. O ovo me vê. Eu te amo. Ovo. A aura dos meus dedos é que vê o ovo. Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana. Eu preciso da clara e da gema (referência feita ao senhor Deus - “clara a gema” referência feita à ciência e a religião). O ovo é um dom. O ovo é invisível a olho nu. O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovulando (triângulo = trindade, ovulando = eterno, infinito). O ovo é originário na Macedônia (Jesus Cristo andou pela Macedônia), o homem o desenhou na areia e depois o apagou com pé nu.

Clarice continua dizendo que o ovo é coisa de se tomar cuidado. O ovo vive sempre foragido. Por estar sempre adiantado demais para a sua época. O ovo é branco, mas não pode se chamado Dr. Branco. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era. E foi chamado de “aquele homem” (referência feita a Jesus).

O ovo ganha um sobrenome: ovo de galinha. Nesse parágrafo Clarice nos apresenta o perigo que o ovo representa.

"Perigo que ele se descubra, se descobrirem poderiam obrigá-lo a se tornar retangular. Mas não pode. Sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se erradia como um não querer. O ovo nos põem em perigo. Nossa vantagem é que ele é invisível.
O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz da galinha. O ovo é a cruz que a Galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da Galinha. A galinha ama ovo (galinha = humanidade = ovo = Deus). Ela não sabe que existe o ovo se soubesse que existia em si mesma ela se salvaria (humanidade e Deus)? O desarvoramento da galinha vem disso; gostar não fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. Quanto veio antes. Foi o ovo que achou a galinha, a galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente escolhida. A galinha vive como um sonho. Não tem senso de realidade. O mal desconhecido da galinha é o ovo. A galinha tem muita vida interior. A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte viesse vindo um ovo. Como a galinha poderia se entender se ela é o oposto do ovo. A contradição do ovo?
Dentro de si a galinha não reconhece o ovo. Fora de si também não. De repente olho o ovo na cozinha e penso em comida. Está se fazendo a metamorfose em mim. Fora do ovo que se come, o ovo não existe."

Neste parágrafo Clarice volta a falar da galinha: sua felicidade, suas perdas e seus ganhos. Suas penas para amenizar, suavizar a travessia ao carregar o ovo. Seu prazer. Mas continua não entendendo o ovo. E Clarice muda o discurso. Deixa de falar do ovo e da galinha para começar a falar de agentes.

Nos agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, mas às vezes nos reconhecemos e a isso chamamos amor. Então não é necessário o disfarce: embora não se fale. Também não se mente, embora não se diga a verdade, também não e necessário dissimular. E o texto continua, nesse parágrafo falando do amor, da vaidade, desilusão. Do amor que enriquece, faz referência à inveja, ao prazer como uma doação recebida sem orgulho.

O parágrafo termina dizendo que nos foi imposta uma natureza toda adequada ao prazer que facilita, torna menos penoso o prazer.

No parágrafo que segue o texto fala dos agentes que se frustrados se suicidam, de outros que deixam de viver por motivos diversos. Até o fim o parágrafo faz menção à existência, à vida em si. Traz o problema da galinha para a existência humana que o texto chama de agentes. Fala em morte, ingenuidade, tolice, lealdade, são agentes presentes na natureza humana, que o agente não vê, não conhece assim como a galinha não vê, e não conhece o ovo, mas que carrega dentro dela com dificuldades. O parágrafo se completa da seguinte forma. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina motivos a nossa vida enfim.

Nos últimos parágrafos o narrador volta à realidade. Como começou a narrativa ele a termina. O ovo que estava sobre a mesa e que provocou toda essa reflexão, estava agora na frigideira pronto para ser comido pelas crianças que saiam de todos os lados. "Viver é eternamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir. Viver é fazer, é fazer rir dos mistérios, o meu mistério é de eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades."

O texto continua dissertando sobre a vida cotidiana, dos trabalhos, das liberdades, da corrupção. E também o tempo que me deram e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecidas do ovo (ovo-vida).

Neste parágrafo estão registradas as reclamações de alguém que representa toda a humanidade, e diz: "ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça. Exatamente para que o ovo se cumpra? Liberdade ou estou sendo mandada? Minha revolta é que para eles eu não sou nada, sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão ando ultimamente bebendo. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou agente ou traição mesmo."

O texto termina com a resignação do narrador. Aceita tudo que lhe é cobrado. Dorme o sono dos justos por saber que sua vida fútil não atrapalha a marcha dos tempos ela sabe que a querem ocupada e distraída. Lamentação continua: "eles me querem como instrumentos do trabalho deles, de qualquer modo era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu." O texto termina como começou, com o ovo:

"por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um equívoco.
Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Mas se eu fizer apenas o sacrifício de viver apenas a minha vida e de esquecê-lo. Se o ovo for impossível.
Então, livre, delicado, sem mensagem alguma para mim talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até essa janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe do nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminado-a de minha palidez."

CEM ANOS DE PERDÃO

Neste breve conto, também passado nas ruas de Recife, Clarice Lispector aborda novamente o tema da rosa, que lhe é tão caro.
Cem anos de perdão (Conto da obra Felicidade clandestina), de Clarice Lispector
Neste breve conto, também passado nas ruas de Recife, Clarice Lispector aborda novamente o tema da rosa, que lhe é tão caro.

Em “Cem anos de perdão” ela fala de outra fantasia, tornada talvez realidade, e cuja satisfação da conquista se assemelha a uma visita aos bairros ricos da cidade, diferentes do seu, onde em vez de sobrados simples como aquele em que mora há imponentes palacetes cercados de pomares e jardins, que despertam a sua admiração e cobiça.

O relato memorialístico lembra a menina Clarice, com uma amiguinha, olhando “com a cara imprensada nas grades”, estrangeiras e ávidas, o mundo de beleza e fartura que lhes é vedado, do qual se sentem exiladas e no qual são, efetivamente, proibidas de entrar. Elas olhavam para os palacetes e disputavam a posse imaginária deles.

O enredo se desenvolve em torno dos cálculos da menina para roubar uma rosa de um jardim. O objeto do roubo é tão pequeno para a importância que lhe dá a autora, que chega a produzir uma suspeita no leitor.

Ao contrário dos demais contos, nos quais ela implora a outros a satisfação de seus desejos, ou cede à frustração dos mesmos, neste conto ela não espera nem se conforma, ao contrário, tece os seus ardis e vai em busca daquilo que deseja, sem se importar com as conseqüências. É como se toda aquela exuberância e alegria alheias pudessem ser experimentadas por vias sorrateiras, ilegais, mas tão legítimas quanto quaisquer outras.

A menina apanha a rosa, tomando cuidado para não ser vista.

Enquanto ela colhia as rosas a fim de levar para casa, a colega vigiava.

As duas, usando dessa estratégia, uma colhia, a outra vigiava, passaram a furtar rosas com freqüência. Além de rosas, furtavam também pitangas. “Ladrão de rosas e pitangas têm cem anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem pra ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.”

O conto é permeado por símbolos: há a alusão ao jardim ou pomar, que evoca o Paraíso bíblico; há a interdição às crianças, ou aos não-iniciados, da experiência das delícias e dores do conhecimento; há os diversos motivos ocultistas que ligam à paixão física à Paixão mística, como a rosa e seus espinhos. O erotismo não se expressa explicitamente, portanto, mas na escolha dos objetos roubados: rosas e pitangas; no motivo elementar e ausente do roubo: roubava simplesmente para possuir as rosas, para comer as pitangas; mas, sobretudo, nas descrições ardentes e sensuais da flor e do fruto, cuja adjetivação generosa não deixa dúvidas quanto ao papel alegórico desses elementos na narrativa: “A flor soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava e seu coração quase parecia vermelho”. Vermelho como as pitangas, que “escondidas na folhagem era preciso buscar às apalpadelas cegas, até sentir o úmido da frutinha”. O colher das pitangas, que muitas vezes, na sua “pressa”, deixava-lhe os dedos “como ensangüentados”, imagem que também é utilizada na descrição da colheita da rosa: “Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos”, chega a sugerir sucessivos defloramentos, dedução que a autora reforça no último parágrafo, quando diz que “as pitangas pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens”.

Não deixa de ser estranho a autora atribuir à menina o papel de defloradora de virgens. Mas não há como negar que a descrição das rosas e das pitangas são sugestivas evocações do órgão sexual feminino. A evidência da proibição e a presença marcante de uma culpa que deveria, mas não é sentida, são contrapostas à excitação do roubo e à detalhada descrição do processo, feito a duas: “a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava”. A satisfação do resultado contribui para a perpetuação da brincadeira: “Foi tão bom. Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas”.

Uma confissão íntima, velada, de algum jogo sexual infantil, arrancado alegoricamente à memória culpada (por não sentir culpa) da mulher adulta? Um texto ocultista, que esconde na aparente simplicidade do tema uma mensagem vedada aos não-iniciados? Uma alusão metalingüística à natureza do exercício do seu mestrado literário? “Não me arrependo” – diz ela, afinal. “Ladrão de rosas e de pitangas tem cem anos de perdão”.

A LEGIÃO ESTRANGEIRA

O conto começa com a protagonista lembrando-se de Ofélia e seus pais que conhecera, mas há muito tempo não via mais. “Estou tentando falar daquela família que sumiu há anos sem deixar traços em mim”.
A legião estrangeira (Conto das obras Felicidade clandestina e A legião estrangeira), de Clarice Lispector
O conto começa com a protagonista lembrando-se de Ofélia e seus pais que conhecera, mas há muito tempo não via mais. “Estou tentando falar daquela família que sumiu há anos sem deixar traços em mim”.

A protagonista, preocupada com a família que foi embora sem dizer para onde, surpreendeu-se com o aparecimento de um pinto na sua casa, doado por alguém, não disse quem, bem na véspera do natal.

Conta a protagonista, da admiração de todos na casa, seu marido e seus filhos, todos ficaram surpresos, tentando adivinhar o que o pinto estava fazendo ali nessa ocasião. “Mas o natal é amanhã, disse acanhado o menino mais velho. Sorrimos desamparados curiosos”.

A protagonista narradora define o fato do pinto como um sentimento que vai se modificando como a água que vai se transformando a cada ocasião que se lhe apresenta: “mas sentimentos são de um instante. Em breve como a mesma água já é outra quando o sol a deixa mais leve, e já é outra quando se enerva e tenta morder uma pedra, é outra ainda no pé que mergulha – em breve já não tínhamos no rosto apenas aura e iluminação. Em torno do pinto estávamos bons e ansiosos”.

Ela, a protagonista narradora, fala da bondade e o efeito que ela provoca em cada pessoa de sua família e nela. No marido rapidez e severidade, nos meninos, um ardor, e nela protagonista, intimida. Como a água os sentimentos iam se transformando. “Daí a pouco olhamos enredados pela falta de habilidades de sermos bons, e o sentimento já era outro, da falta de bondade para tínhamos no rosto a responsabilidade de uma aspiração, o coração pesado de um amor que já não era mais livre. Passado o momento do pinto, os adultos já o tinham esquecido, mas os meninos não, ficara uma indignação.

Não só indignação, mas também acusação de que nada fazíamos pelo Pinto e pela humanidade”. Constrangidos, pai e mãe ainda não haviam dito para os filhos que as coisas são assim mesmo. Então a protagonista confessa o quanto é difícil dizer para os filhos de que as coisas eram assim mesmo as aceitávamos.

“E o pinto continuava ali sobre a mesa, piando cheio de medo. Não tinha como acalmá-lo porque ele não conhecia sentimentos”. Nesse momento em que o pinto estava ali sobre a mesa com medo, a protagonista desejou que o pinto fosse igual os humanos e sentisse como os humanos o sentimento do amor e soubesse que ali, ele, como obra de Deus, estava sendo amado.

“E o menino menor não suportou mais, e perguntou: você quer ser a mãe dele? Eu disse que sim” Os quatro meninos ficaram então esperando que ela tomasse uma atitude em favor do pinto. Ela, a protagonista narradora fala dos sentimentos e do amor que o pinto estava provocando na família. Ela como mãe, como o nascimento é próprio das mães. Tentou isolar-se do problema.

Diante de tamanha crise no amor a protagonista se presta a uma reflexão e percebe que um dia, sem ela saber com certeza a amaram.

Então estendeu a mão e pegou o pinto.

Ao pegar o pinto lhe veio à lembrança novamente Ofélia. Agora ela relembrava não só Ofélia. Mas também seus pais. Com carinho relembrou do dia no banco da praça em que conversava com a mãe de Ofélia, uma mulher trigueira que fazia os homens a olhar pela segunda vez, do seu desejo de fazer um curso para fazer bolos. Lembrou-se também do pai de Ofélia, homem bem apanhado com o firme desejo de se dar bem com seu ramo de negócio, gerente de hotel ou até mesmo como dono de um.

Mas quem eram as personagens que compunham aquela família misteriosa?

A protagonista conta que o contato com a família se fez através de Ofélia. Ofélia, menina inteligente, como descreve a narradora, sentava-se com jeito, tinha opinião formada sobre tudo.

Dava conselhos para a educação dos filhos, dava instruções e advertências. Banana não se mistura com leite. Mata. Para tudo tinha uma resposta. A última palavra sempre era dela. Tinha o hábito de dar opinião sobre tudo, criticar procedimentos e analisar.

Uma vez chegou a chamar a protagonista de esquisita. Esquisita porque comprava verduras demais para a semana e acabava estragando na geladeira, outra vez porque e comprou de menos e não chegava até o fim da semana. Tudo isso irritava a protagonista que sempre tentava induzida ao erro, sempre em vão, salvo um dia quando lhe foi perguntado o que era geografia e ela respondeu: “Geografia é um modo de estudar”. O erro lhe valeu conselhos como: vai errando devagar. É errado que se aprende.

Ofélia era uma menina inteligente, mas a protagonista desejava livrar-se dela: existe uma menina mais antipática? Um dia parecia que este dia se aproximava e rapidamente.

Bateram a porta da casa para a surpresa da protagonista narradora, lá estava a mãe de Ofélia.

Por acaso Ofélia Maria esta aí?

Recebendo resposta afirmativa, a mãe de Ofélia parecia estar ofendida e reprovando as visitas de Ofélia na casa da vizinha. Esta atitude da mãe deixou preocupada a protagonista, pois nunca havia feito nada que desagradasse a menina. Enquanto elas iam embora ela percebeu o quanto a mãe protegia a filha. Finalmente, pensou ela, Ofélia não vira mais aqui. A mãe dela deve me odiar, pensa que eu quero roubar a sua filha.

Não foi o que aconteceu, Ofélia continuou a visitar a casa da amiga. Voltava sempre para reparar nos erros da amiga dar-lhe conselhos.

O que Ofélia realmente queria? Nem mesmo a protagonista tinha a resposta.

Mais tarde Ofélia apareceu para a visita costumeira. Assuntou-se com a presença do Pinto e fez perguntas, todas respondidas.

A partir daí o pinto gerou uma situação de consciência na protagonista. A menina inteligente virou criança. A protagonista que antes via a menina como chata, agora a passa ver como uma criança que quer resposta da vida. A menina se sentiu impelida a roubar o pinto, que segundo sua dona, esta atitude mostrou que a menina tinha inveja porque ela não tinha aquele pinto.

“Depois que o tremor da cobiça passou, o escuro dos olhos tremeu todo: não era a um rosto sem cobertura que eu a expunha agora eu a expusera ao melhor do mundo: a um pinto.

Sem me verem, seus olhos quentes me fitavam numa abstração intensa que se punha em íntimo contato com minhas intimidades”.

A menina ali, diante da protagonista, estava cheia de dúvidas, de espanto, com a pergunta estampada no rosto e nos olhos cuja resposta a protagonista não dava por conta da moralidade.

A protagonista foi percebendo a angústia da menina. Como também a sua angústia de ver aquela menina ali diante dela se transformando numa criança e desejando ser dela ou se ala mesma. Ofélia voltou à pergunta: “É um pinto?

Ele está na cozinha.

Você pode ir à cozinha brincar com o pintinho”.

Aqui a protagonista deixa para a menina a escolha de ir ou não ir: “sei que não deveria ter dado a escolha.

Só vão ver o pintinho se você quiser”.

A partir daí para diante a protagonista faz uma análise psicológica do aceitar e do odiar.

Era preciso que a menina a odiasse para que ela, a protagonista pudesse resistir a seu ódio, ao seu sofrimento.

Reclama a protagonista: ao me usar me machucava com força; ela me arranhava ao tentar agarrar-se a minhas paredes lisas. Afinal sua voz soou em baixa e lenta raiva: - Vou ver o pinto na cozinha.

Com a dignidade e a elegância de sempre foi até a cozinha, mas voltou logo.

“Mas é um pintinho, disse. Ri, Ofélia olhou-me ultrajada. De repente riu, rimos juntas. Ofélia pôs o pintinho no chão e começou a brincar com ele, se corria atrás dele”.

Passada a êxtase pelo pinto, finalmente Ofélia resolveu ir embora. Depois de ir à cozinha levar o pinto despediu-se da amiga e saiu. A narradora protagonista conta assim o final da história de Ofélia: "Relutante foi afastando devagar a cadeira do caminho. Até parar devagar à porta da cozinha. No chão estava o pinto morto. Ofélia, inutilmente tentei eu atingir o coração da menina calada. OH! Não se assuste muito, às vezes a gente mata por amor, mas juro que um dia a gente esquece, juro. Eu estava agora cansada, sentei-me no banco da cozinha.
Sentada como se todos esses anos eu tivesse com paciência esperado na cozinha, Como na páscoa nos é prometido, em dezembro ele volta. Ofélia é que não voltou: Cresceu. Foi ser a princesa hindu por quem no deserto sua tribo espera".


OS OBEDIENTES

Neste conto é enfocada a vivência de um casal, e a voz narrativa tem papel preponderante para interpretar os “acontecimentos” sob uma ótica de ironia, que desmascara muitos valores da sociedade patriarcal.

Trata-se de um relato singular, que recria a rotina desmotivadora de um casal, que vai vivendo por viver, sem ter consciência nem de sua realidade medíocre, nem da realidade que os cerca. São pessoas anônimas, iguais a outras pessoas, que se submetiam ao irremediável da vida.

Um casal viveu muitos anos junto. Sua harmonia conjugal era aparentemente perfeita. Mas não tinham emoções. Cumpriam com perfeição a rotina, totalmente obedientes ao que se convencionou chamar de realidade de um casal, inclusive quanto à fidelidade.

Nem individualmente nem em comum faziam ou diziam algo de inconveniente.

Já ultrapassada a idade de 50 anos, ambos começaram a ter alguns sonhos. Cada um pensava timidamente em seu interior sem falar: ele imaginava que muitas aventuras amorosas significariam vida; ela, que outro homem a salvaria.

Certo dia, ela estava comendo uma maçã e sentiu quebrar-se um dente da frente.

Olhou-se no espelho do banheiro, “viu uma cara pálida, de meia-idade, com um dente quebrado, e os própiros olhos...” Então, jogou-se pela janela.

O marido continuou existindo; “seco inesperadamente o leito do rio, andava perplexo e sem perigo sobre o fundo com uma lepidez de quem vai cair de bruços mais adiante.”

A REPARTIÇÃO DOS PÃES

O assunto do texto é um almoço para participantes, como Clarice esclarece: ”Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo”. Trata-se de um almoço de obrigação oferecido num sábado, dia desejado por todos, e no entanto, era obrigação permanecer no almoço.

Clarice, para reforçar o estado de espírito dos convidados, usou como metáfora o trem descarrilado que obriga a todos os passageiros permanecerem em um lugar estranho, entre estrangeiros, desconhecidos que não conhecem o prazer de cada um que ali se encontra. O narrador, um dos convidados, foi narrando a insatisfação de perder o sábado com um almoço que poderia ter sido trocado por uma quinta-feira à noite. O narrador lamenta também que a dona da casa não se importava com o grupo heterogêneo: um sonhador outro resignado. Para justificar a longa espera pelo almoço, Clarice, continuou se utilizando da metáfora do trem: ”...Como pela hora da partida do primeiro trem, qualquer trem” ou a metáfora do cavalo: menos refrear o cavalo”. Finalmente o almoço.

Antes do almoço, a dona da casa, começou a lavar os pés dos estrangeiros. Com isso Clarice fez menção á última ceia quando Jesus lavou os pés de seus discípulos em sinal de Humildade. Já à mesa o narrador detalha a comida que estava sobre a mesma.

Começa dizendo que sobre a mesa se encontrava uma toalha branca, sobre a toalha amontoavam-se espigas de trigo. Descrita a mesa, o narrador começou a descrever todas as iguarias que estavam sobre ela além do trigo: “maçãs vermelhas, enormes cenouras, abacaxis malignos... Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para redondo ar”. Nas bilhas estava o leite, o vinho quase negro de tão pesado. Tudo diante de nós.

Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo como é, não como quiséramos. Não havia holocausto, tudo queria ser comido. O narrador continua descrevendo o almoço como dizendo estarem todos ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. “Comi aquela comida e não o seu nome”. Finaliza dizendo que: “Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos”.

UMA ESPERANÇA

Uma esperança, um inseto que se chama esperança, pousou na parede da casa da narradora. Ela e os filhos ficaram observando a esperança andar, sem voar (“Ela esqueceu que pode voar, mamãe.”)

Uma aranha saiu de trás do quadro e avançou em direção à esperança. Embora “dê azar” matar aranha, ela foi morta por um dos filhos.

A narradora se espanta de não ter pego a esperança, ela que gosta de pegar nas coisas. Lembrou-se de certa vez que uma esperança pousou no seu braço. “Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada”.

Leia o conto na íntegra:

Aqui em casa pousou uma esperança, não a clássica que tantas vezes verifica-se ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre, mas a outra, bem concreta e verde: o inseto. Houve um grito abafado de um dos meus filhos:

- Uma esperança! E na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele que também unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço, mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser.

- Ela quase não tem corpo, queixei-me.

- Ela só tem alma, explicou meu filho. E como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças. Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre os dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.

- Ela é burrinha, comentou o menino.

- Sei disso, respondi um pouco trágica.

- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.

- Sei, é assim mesmo.

- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

- Sei, continuei, mais feliz ainda.

Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando, vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não apagasse.

- Ela se esqueceu que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.

Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo. Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha, não uma aranha, mas me parecia “a” aranha, andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse francamente, confusa sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...

- Mas ela vai esmigalhar a esperança! Respondeu o menino com ferocidade.

- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros.

- Falei sentindo a frase deslocada e ouvindo certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada; eu lhe diria apenas; você fez o favor de facilitar o caminho da esperança.

O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e com a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em nossa casa, alma e corpo, mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde e tem uma forma tão delicada que isso explica porque eu que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la. Uma vez, aliás, agora que me lembro, uma esperança bem menor do que esta, pousara no meu braço, não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: e essa agora? Que devo fazer? Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E acho que não aconteceu nada.

MACACOS

Perto do Ano-Novo, a família ganhou um mico de presente. Era um macacão ainda não crescido, que não dava sossego a ninguém. A dona da casa-narradora estava exausta.

Uma amiga entendeu o sofrimento dela e chamou uns meninos do morro. Eles levaram o macaco.

Um ano depois, a narradora comprou uma macaquinha nas mãos de um vendedor em Copacabana. Era delicada e recebeu o nome de Lisette. Vestiram-na de mulher e ela encantava a todos.

Três dias depois, Lisette estava na área de serviço sendo admirada pela família. Ela encantava sobretudo pela doçura. Só que não era doçura, era a morte chegando. Levaram-na rapidamente para o veterinário, enfrentando um trânsito difícil. Ela estava tendo falta de oxigênio. Deixaram-na na clínica.

No dia seguinte, morreu. Uma semana depois, o filho mais velho disse para a mãe: “Você parece tanto com Lisette! ‘Eu também gosto de você’, respondi.”

OS DESASTRES DE SOFIA

Este longo conto também alude, como no conto "Felicidade Clandestina", a um livro infantil: Os Desastres de Sofia, da Condessa de Ségur, grande sucesso na França e no Brasil até meados do século XX. Também neste caso a alusão não parece ser gratuita.

Os desastres de Sofia (Conto das obras Felicidade clandestina e A legião estrangeira), de Clarice Lispector
Este longo conto também alude, como no conto "Felicidade Clandestina", a um livro infantil: Os Desastres de Sofia, da Condessa de Ségur, grande sucesso na França e no Brasil até meados do século XX. Também neste caso a alusão não parece ser gratuita. Muitos elementos neste livro são de importância fulcral para a autora. O nome da menina, por exemplo, que significa “sabedoria”, entra em choque com a sua atuação dita “desastrosa” no mundo, narrada sob a forma de episódios onde a efabulação conduz a uma inevitável “moral da história”, de cunho fortemente religioso e repressor. Expressa por um adulto, em geral a mãe, que ocupa o lugar da educadora, esses ensinamentos direcionam-se sempre ao julgamento e à condenação dos atos da criança, desfiando os itens de uma cartilha de normas sobre a formação de uma “menina exemplar”.

O conto “Os desastres de Sofia”, focaliza o ambiente escolar. A menina Clarice é mais velha que Sofia, tem nove anos. Como Sofia, ela também trava uma disputa com um adulto, não a mulher e mãe, mas um homem e professor. E como Sofia, também sai derrotada, mas por razões diferentes. Enquanto a Condessa derrota a criança com o seu modelo de adulto perfeito e ideal, Clarice mostra como o seu esboço de criança imperfeita e rebelde acaba triunfando sobre o adulto falho e incompetente que ela tenta corrigir, para que ele a ensine a contento. Sua vitória é experimentada, portanto, como uma derrota: descobrindo-se mais forte do que o adulto, a criança sente-se desamparada e aterrorizada num mundo sem regras e sem certezas.

A relação professor-aluno é um tema de predileção, e mesmo recorrente na obra de Clarice Lispector, desde o seu primeiro romance, Perto do coração selvagem.

Neste conto, a relação da menina Clarice com o professor é intensa. Começa como um desafio de sua parte, que gera um aborrecimento da parte dele. As provocações da criança vão aumentando, e a irritação do homem vai ficando maior e mais forte, como num jogo de sedução erótica sem envolvimento sexual. Como diz Clarice: “Não o amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto, com a cólera de quem ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos”.

A crítica ao sistema educacional que diviniza um dos pólos do aprendizado e demoniza o outro é tão forte que a própria Clarice recua: “Não, talvez nem seja isso. As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito.” Mas a dicotomia está estabelecida nesses termos. O “santo” professor e a menina “prostituta”, disposta a vender o seu amor por uma promessa de aceitação, ainda que precisando pagar por isso o alto preço já pago pela Sofia da Condessa: a perda de si mesma. Para ser amada, a menina Clarice, como todas as crianças em geral, “ávidas matérias de Deus”, pujante de afeto em estado bruto, estava disposta a se entregar inteiramente, e nesta entrega se perder para sempre. Ela aguardava, com esperança e total confiança, entrar no mundo dos adultos, no qual pensava poder se libertar de suas angústias e medos infantis. Daí a revolta contra o professor, um homem cujas fraquezas eram por demais evidentes: “Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de profissão, e passara pesadamente a ensinar no curso primário”. Daí também a atração por ele, como se intuísse que precisava arrancar a sua máscara para revelar o desconhecido que ali se ocultava, a fim de que ele lhe revelasse a verdade que seria a derrota de sua própria ilusão.

Não há neste conto, como nos outros, referências explícitas às ruas do Recife, mas ao sobrado onde Clarice morou na Praça Maciel Pinheiro. Do colégio também não há referências, exceto algumas descrições da ampla e arborizada área do recreio, mas sabe-se que a autora estudou na escola pública João Barbalho e freqüentou o Ginásio Pernambucano em Recife. A referência ao sobrado aparece como uma ruptura na evolução temporal da narrativa. A autora interrompe o relato e salta quatro anos à frente da história, mostrando a menina Clarice já aos treze anos, “toda composta e bonitinha como um cromo de Natal”, desmoronando “como uma boneca partida” ao receber a notícia da morte do professor. Após esse ligeiro flash, que mostra a importância do professor na vida da menina, e conseqüentemente a importância do aparentemente banal episódio que se vai narrar, o conto atinge o seu clímax, que também se relaciona, como em "Felicidade Clandestina", com uma revelação de ordem literária. Essa revelação é feita através de um longo diálogo, tecido de maneira muito similar à técnica cinematográfica da câmara lenta, no qual se assiste ao desmoronamento das máscaras dos personagens. Assim, uma inesperada criança aparece sob a máscara do professor e uma inesperada mestra aparece sob a máscara da criança.

A revelação do aprendizado é profunda. Descrita como um verdadeiro e desentranhado parto, com vísceras expostas e tudo, o homem se percebe, com imprevista alegria, como aprendiz e liberto, e a menina se descobre, com surpresa e pavor, como mestra e libertadora. Os papéis tradicionais da relação educador-educando se invertem, já não mais relacionados ao mero repasse/recepção de informações, que seriam esperados na relação convencional, e os indivíduos envolvidos mergulham numa radical descoberta de si mesmos.

Como vimos, a narradora gostava do professor gordo, grande, silencioso, feio. Era atraída por ele. Mas infernizava as aulas. A menina fazia este jogo: amava-o atormentando-o. Não estudava nem aprendia nada.

Tudo se passa em torno de uma redação. O professor solicita à classe que reescreva “com suas próprias palavras” uma dessas histórias de cunho edificante, que ele acaba de ler em voz alta, na qual um homem, após buscar um tesouro em terras estrangeiras, consegue ficar rico no próprio quintal, através do seu trabalho. A moral da história, portanto, recaía na clássica conclusão de que o trabalho árduo era o único meio de se chegar a ter fortuna.

Para desafiar o professor, como de hábito, a menina escreve a sua composição invertendo deliberadamente o final da história: “Não consigo imaginar com que palavras de criança teria eu exposto um sentimento simples mas que se torna pensamento complicado. Suponho que arbitrariamente contrariando o sentido real da história, eu de algum modo já me prometera por escrito que o ócio, mais que o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a que eu aspirava. Eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo me fosse dado por nada. Ao contrário do trabalhador da história, na composição eu sacudia dos ombros todos os deveres e dela saía livre e pobre, e com um tesouro na mão”.

De que maneira aquilo atingiu o professor infeliz, “monte de compacta tristeza” que trabalhava por obrigação, com indisfarçável aborrecimento, e que ocultava um passado misterioso, não se pode saber. Mas certamente atingiu-o, a ponto de ele, que jamais se alegrava e jamais se dirigia a ela, falar-lhe com atenção e carinho, e esboçar o sorriso mais sacrificado que Clarice jamais terá visto na vida, tal é a maneira como o descreve: “E bem devagar vi o professor todo inteiro, vi que era muito grande e muito feio, e que ele era o homem da minha vida. Aquilo que eu via era anônimo como uma barriga aberta para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara, o mal-estar já petrificado subia com esforço até a sua pele, era a careta vagarosamente hesitando e quebrando uma crosta, mas essa coisa que em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se parecia tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei. (...) Até que o esforço do homem foi se completando todo atento, e em vitória infantil ele mostrou, pérola arrancada da barriga aberta – que estava sorrindo”.

O processo inverso acontece com a menina, que, afogueada pela corrida e sorridente pelo hábito, diante da transformação do professor sente-se recuar e colar-se à parede, enquanto seu corpo inteiro vai-se reduzindo, como o do gato da história de Alice no país das maravilhas, a um sorriso sem rosto. Acompanhamos lentamente o seu processo de desaparecimento enquanto criança: o riso despreocupado e confiante amarelando-se, artificial; uma gota de suor escorrendo lentamente pela testa e pelo nariz até dividi-lo ao meio, e finalmente o seu completo desaparecimento numa desusada, inusitada e madura seriedade.

A transformação atinge a ambos com inesperada violência. Enquanto a menina, num insight precoce, percebe a sua missão no mundo como escritora, “Mas se antes eu já havia descoberto em mim todo o ávido veneno com que se nasce e com que se rói a vida – só naquele instante de mel e flores descobri de que modo eu curava: quem me amasse, assim eu curaria quem sofresse de mim”, o professor se revela desamparadamente feliz “como um menino que dorme com os sapatos novos”. Um tremendo bem havia feito a composição de Clarice àquele homem, sem que ela desse por isso ou tencionasse fazê-lo. Era à revelia de si mesma que suas palavras atingiam os outros e os transformavam, e a consciência desse poder advindo de um estranho talento conduz a menina à terrível conclusão: “Tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro”.

A revelação para ela é tão forte que terá crises de vômito em casa. O que o professor lhe ensinava, sem querer, era sério demais para ser apreendido com tranqüilidade pelos seus nove esperançosos anos. A partir daí passava a saber que não haveria segurança mais adiante, porque não havia uma verdade interditada, na posse da qual sairia confiante pelo mundo dos adultos, ilusão que a escola e a literatura infantil edificante se compraziam em reforçar: “Na minha impureza eu havia depositado a esperança de redenção nos adultos. A necessidade de acreditar na minha bondade futura fazia com que eu venerasse os grandes, que eu fizera à minha imagem, mas a uma imagem de mim enfim purificada pela penitência do crescimento, enfim liberta da alma suja de menina. E tudo isso o professor agora destruía, e destruía o meu amor por ele e por mim”.

Ao lado dessa revelação, há outra relacionada com a sua profissão. A literatura seria para ela uma penitência, o exercício de um apostolado onde se faria amada para curar os que sofrem. Curar com as belas mentiras da invenção, avançando lentamente para perceber que, muitas vezes, essas mentiras são mais verdadeiras do que as verdades do senso-comum. O professor terá sido, talvez, o seu primeiro contato com o efeito dessa sua irreverente escritura, nascente no mundo; daí a sua importância para a menina e a importância desse episódio, tão longamente rememorado, para a autora.

No final do conto, Clarice parodia a clássica história infantil de "Chapeuzinho Vermelho", também permeada de erotismo e admoestação às jovens sobre os perigos relacionados ao crescimento, mas descreve os seres humanos, indistintamente, como feras, feras que se interrogam assustadas. Na sua narrativa destituída de maniqueísmos já não há a menina ingênua e o lobo malvado, apenas duas feras numa relação de ódio e amor, cujas longas unhas tanto servem “para arranhar de morte” como para “arrancar espinhos mortais”; cuja boca de fome tanto serve para “morder” como para “soprar”; cujas mãos “ardem” e “prendem”. O caçador e o lobo, a santa e a prostituta convivem em cada homem e em cada mulher, em todas as suas idades ao longo da vida. Na conclusão do Chapeuzinho Vermelho de Clarice, portanto, as duas feras olham intimidadas para as suas próprias garras, “antes de se aconchegarem uma à outra para amar e dormir”.

No conto “Os desastres de Sofia”, Clarice se reporta à infância para falar, com extrema poesia, da sua descoberta como escritora, homenageando com carinho o mestre, que só atuou como tal quando procedeu como aprendiz, fazendo-a perceber o poder das palavras: o de suavizar a dor de quem não ama, no sentido erótico e esotérico que confere ao termo. Escrever como Clarice, invertendo a moral das histórias, é um duro ato de amor, porque pode libertar, fazer desmoronar, desentranhar o ser que se esconde sob as máscaras impostas pela sociedade e reforçadas por todos os sistemas pedagógicos do mundo, e isso não se faz sem medo e sem sofrimento.
A CRIADA

Descrição poética de Eremita, a criada que fazia os serviços domésticos como alguém talhado exatamente para aquilo. Parecia viver num mundo profundo e misterioso, mas sem a verdadeira consciência da profundidade da floresta em que mergulhava.

Eremita que nada mais apresentava a não ser o perfil de um criada: nem bonita nem feia, cumpria seus deveres sem competência e sem desleixo; mas, por trás da figura-padrão e das frases convencionais pronunciadas convencionalmente, escondia-se um mundo interior indecifrável para qualquer pessoa, inclusive para ela mesma.

De vez em quando, se interiorizava, se desligava; quando retornava desse passeio por sua floresta íntima, estava mais calma e ia consolidando a sua doçura próxima das lágrimas.

Nada em Eremita denunciava perigo, a não ser uma maneira rápida de comer pão. “No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecia sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela também aprendera em suas florestas.”

A MENSAGEM

Conto cujo tema é a dificuldades de relacionamento, sobre dois estudantes, que tentam não se ver como homem e mulher.

Um rapaz de dezesseis anos e uma moça de dezessete, colegas de escola sem amizade, um dia se sentiram ligados um ao outro porque ela disse que sentia angústia e ele também.

A partir de então se tornaram íntimos. Intimidade que não significava sexo nem amor. Eles se sentiram ligados porque ambos queriam ser autênticos, sinceros, diferentes dos outros. Não se viam como homem e mulher, mas como dois seres angustiados, à procura de algo que eles não sabiam o que fosse. Vagamente, confusamente, achavam-se portadores de uma mensagem. Mas o que era isso?

Saindo do colégio no último dia letivo, os dois caminhavam numa rua próxima do Cemitério S. João Batista, no Rio. A calçada era estreita e os ônibus passavam rentes. De repente, os dois se viram colados a uma casa velha. Pararam diante dela, olharam para a fachada. Em seu íntimo cada um foi se descobrindo ali, parados: ele era apenas um rapaz e ela, uma moça. Não tinham mais o que se dizer e por que continuarem juntos.

Ela despediu-se, correu para um ônibus que estava parado. Entrou subindo como se fosse um macaco, pensou ele, vendo-a acomodar-se lá dentro.

A moça saíra envergonhada por se sentir mulher; o rapaz tinha acabado de nascer homem. “Mas, atolado no seu reino de homem, ele precisava dela. Para quê? (...) para não esquecer que eram feitos da mesma carne, essa carne podre da qual, ao subir no ônibus, como um macaco, ela parecia ter feito um caminho fatal.” O que estava acontecendo a ele naquele momento em que viu a moça entrar no ônibus daquele jeito? Nada! Apenas um instante de fraqueza e vacilação. Só que agora ele se sentia fraco para resistir ao que os outros tentavam ensinar-lhe para ser homem. “Mas e a mensagem?! a mensagem esfarelada na poeira que o vento arrastava para as grades do esgoto. Mamãe, disse ele.”

MENINO A BICO DE PENA

Neste conto o adulto, ao escrever para a criança, desenha-a. A autora se dispõe a uma análise que visa “acompanhar no menino o nascimento da linguagem e do sujeito”.

O narrador busca a visão de criança (do bebê) reconhecendo o mundo e o mostra desse ângulo inusitado.

As experiências espaciais do bebê, a baba, o sono, a mãe, o aconchego, a solidão, a percepção das coisas, a segurança da mãe, a fralda seca.

É um conto sobre o qual é melhor não dizer, mas ler.

Um menino, que ainda não fala nem anda direito, está sentado no chão. Tenta dar alguns passos, cai; engatinha, baba. Depois a mãe o toma no colo, o faz dormir, troca a fralda dele e o ouve dar os primeiros sinais da fala.

UMA HISTÓRIA DE TANTO AMOR

Uma menina de Minas Gerais tinha duas galinhas, Pedrina e Petronilha. Cuidava delas como se fossem pessoas.

Certa vez, foi passar o dia fora e, quando voltou, Petronilha tinha sido comida pela família. Ficou contrariada. Mas a mãe lhe disse que foi pena as duas, ela e a filha, não terem comido algum pedaço de Petronilha, pois, quando a gente come os bichos, eles ficam parecidos com a gente, assim dentro de nós.

Pedrina morreu naturalmente. Morte apressada pela menina que, ao vê-la doente, colocou-a embrulhada num pano escuro, em cima de um fogão de tijolos.

Um pouco maiorzinha, a menina teve outra galinha, a Eponina. Esta foi comida ao molho pardo por toda a família, inclusive pela menina que, embora sem fome, quis que Eponina se incorporasse nela e se tornasse mais dela morta do que em vida. “Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.”

Leia o conto na íntegra:

Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais longíquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua arte. Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava Pedrina e a outra Petronilha.

Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia : "Você não tem coisa nenhuma no fígado". Então, com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café - e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia perto para ela consultar.

Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo galinha tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava:

- Mas é o galo, que é um nervoso, é quem quer! Elas não fazem nada demais! e é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue!

Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em vida fora Petronilha. Sua tia informou:

- Nós comemos Petronilha.

A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguiu olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe:

- Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena.

Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.

Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.

O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma pré-ciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo.

Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.

AS ÁGUAS DO MUNDO

O conto relata o banho matinal de uma mulher no mar. Este a mais ininteligível das existências não humanas; aquela, o mais ininteligível dos seres vivos.

Este texto de Clarice Lispector mostra a integração de um no outro: ela dentro do mar, ele dentro delas aos goles.

Às seis horas da manhã, a mulher entra no mar: este, o mais ininteligível das existências não humanas; ela, o mais ininteligível dos seres vivos.

Ela vai entrando, cumprindo uma coragem. Avançando, abre o mar pelo meio. Ela brinca com a água. Com a concha das mãos cheia de água, bebe em goles grandes. “E era isso o que lhe estava faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem.

Agora ela está toda igual a si mesma.”

Mergulha de novo, de novo bebe mais água. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, não recebe transmissões. Depois caminha na água e volta à praia. Agora, pisa na areia. “E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de um náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.”

Leia o conto na íntegra:

Aí está ele, o mar, o mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar.

Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.

Ela olha o mar, é o que se pode fazer. Ele só lhe é delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra.

São seis horas da manhã. Só um cão livre hesita na praia, um cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porquê ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar.

Seu corpo se consola com sua própria exigüidade em relação a vastidão do mar porque é a exiguidade do corpo que o permite manter-se quente e é essa exigüidade que a torna livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio das seis horas. A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não têm o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no amr em simples jogo leviano de viver. Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de , não se conhecendo, no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem.

Vai entrando. A água salgada é de um frio que lhe arrepia em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal - a alegria é uma fatalidade - já a tomou, embora nem lhe ocorrera sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus mais adormecidos sonos seculares. E agora ela está alerta, mesmo sem pensar, como um caçador está alerta, mesmo sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda- e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido.

O caminho lento aumenta as coragem secreta. E de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda. O sal, o iodo, tudo líquido, deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo - espantada de pé, fertilizada.

Agora o frio se transformou em frígido. Avançando, ela sobre o mar pelo meio. Já não precisa da coragem, agora já é antiga no ritual. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol quase imediatamente já estão endurecendo de sal. Com a concha das mãos faz o que sempre fez no mar, e com altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheia de água, bebe em goles grandes, bons.

E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe com o sal, os olhos avermelham-se pelo sal secado pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto.

Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois não precisa mais. Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer. Quer ficar de pé parada no mar. Assim fica pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate. A mulher não recebe transmissões. Não precisa de comunicação.

Depois caminha dentro da água de volta à praia. Não está caminhando sobre as águas - ah, nunca faria isso depois que há milênios já andaram sobre as águas - mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe impõe resistência puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera.

E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água , e sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe - sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.

A QUINTA HISTÓRIA

Este conto descreve com muito humor e certa dose de suspense, experiências sobre o extermínio de baratas. Relata uma história, a de como matar baratas, em cinco versões, o que leva ao questionamento sobre as muitas formas de narrar um fato, o que incluir, o que excluir, e como um mesmo fato pode originar histórias muito diferentes. Nesse conto, encontra-se a reflexão sobre o fazer literário que acompanha os contos de Clarice Lispector.
A quinta história (Conto das obras Felicidade clandestina e A legião estrangeira), de Clarice Lispector
Este conto descreve com muito humor e certa dose de suspense, experiências sobre o extermínio de baratas. Relata uma história, a de como matar baratas, em cinco versões, o que leva ao questionamento sobre as muitas formas de narrar um fato, o que incluir, o que excluir, e como um mesmo fato pode originar histórias muito diferentes. Nesse conto, encontra-se a reflexão sobre o fazer literário que acompanha os contos de Clarice Lispector.

A narradora conta que se queixou a uma vizinha de que subiam no seu apartamento as baratas que vinham do térreo. Então a vizinha lhe deu a seguinte receita para matar as baratas: misturar em partes iguais açúcar, farinha e gesso. “A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas”. Assim foi feito e as baratas morreram.

Como vimos, Clarice Lispector desdobra quatro ou cinco vezes uma historieta banal. Trata-se, em certo patamar, exatamente do mesmo fato, deflagrado sempre pela da mesma queixa contra baratas.

Contadas diversamente, cada versão dos mesmos fatos se transforma efetivamente em outra história, conforme indicam os títulos que a autora sugere: “Como matar baratas”, “O assassinato” e “Estátuas”. A quarta história não tem nome, mas insere uma mudança real: a substituição da técnica artesanal para matar baratas por recursos industriais, marcando a passagem do vício à virtude. Já a quinta história, que batiza o conto, se chamaria “Leibniz e a transcedência do amor na Polinésia”. Ao contrário da anterior, a respeito desta sabemos apenas o nome e que começa com a mesma fatídica frase – que, por sua vez, é a última do conto: “Queixei-me de baratas”.

O mecanismo de "A quinta história", onde um único relato é reiniciado várias vezes, até que, estabelecido o mecanismo, o narrador abandona o texto, sugerindo que este continuará se repetindo por inércia, é tão explicito, que insinua uma intenção demonstrativa.

Entre uma e outra versão do mesmo relato, encontramos uma baratinha desesperada ante a morte não apenas irremediável, mas iminente. Ela tem as antenas brancas, sujas do pó branco usado pela narradora para matar baratas, uma mistura de farinha, açúcar e gesso – "A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de dentro delas" – e grita desnorteada – "é que olhei demais para dentro de mim!".

Esta imagem guarda certa literalidade: suas antenas estão brancas, exatamente por ela ter revolvido o veneno preparado pela escritora: um amálgama de substâncias que, ingerido, se alojada em seu estômago e a matará. Não se pode negar que a barata, se não “olhara”, pelo menos tocou aquilo que, mediante a ingestão, passara a constituí-la internamente. Ver e comer são a mesma coisa, e, uma vez que a distância requerida para que o olho diferencie os objetos uns dos outros fora absorvida, ou melhor, devorada – o indistinto abarca tudo.

Leia o conto na íntegra:

Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.

A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.

A outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranqüila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou.

A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora,um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras — subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! — essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para dentro de...” — de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo.

A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? - como quem já não dorme sem a avidez de um rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? - no vício de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem “adeus”, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: “Esta casa foi dedetizada”.

A quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa assim: queixei-me de baratas...

ENCARNAÇÃO INVOLUNTÁRIA

A narradora tem o hábito de, quando vê uma pessoa que nunca viu, observá-la e encarnar-se nela, para poder conhecê-la.

Certa vez, num avião encarnou-se numa missionária. Durante toda a viagem e alguns dias em terra, assumiu o “ar de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-uma missão”.

A narradora levanta a hipótese de nunca ter sido ela mesma senão no momento de nascer, e o resto tinha sido encarnações. Depois ela afirma que não, que ela é uma pessoa. “E quando o fantasma de mim mesmo me toma – então é um encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos uma no ombro da outra”.

Uma vez, também em viagem, ela encontrou uma prostituta perfumadíssima que fumava entrefechando o olhos e estes ao mesmo tempo olhavam um homem que já estava sendo hipnotizado. Então, a narradora fez o mesmo. “Mas o homem gordo que eu olhava para experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo estava mergulhado no New York Times. E meu perfume era discreto demais. Falhou tudo”.

Leia o conto na íntegra:

Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela, nunca termina pela sua própria auto-acusação: ao nela me encarnar, compreendo-lhe os motivos e perdôo. Preciso é prestar atenção para não me encarnar numa vida perigosa e atraente, e que por isso mesmo eu não queira o retorno a mim mesmo.

Um dia no avião...ah, meu Deus - implorei - isso não, não quero ser essa missionária!

Mas era inútil. Eu sabia que, por causa de três horas de sua presença, eu por vários dias seria missionária. A magreza e a delicadeza extremamente polida da missionária já haviam me tomado. É com curiosidade, algum deslumbramento e cansaço prévio que sucumbo à vida que vou experimentar por uns dias viver. E com alguma apreensão, do ponto de vista prático: ando agora muito ocupada demais com os meus deveres e prazeres para poder arcar com o peso dessa vida que não conheço- mas cuja tensão evangelical já começo a sentir. No avião mesmo percebo que já comecei a andar com esse passo de santa leiga: então compreendo como a missionária é paciente, como se apaga com esse passo que mal quer tocar o chão, como se pisar mais forte viesse prejudicar os outros. Agora sou pálida, sem nenhuma pintura nos lábios, tenho o rosto fino e uso aquela espécie de chapéu de missionária.

Quando eu saltar em terra provavelmente já terei esse ar de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-uma-missão. E no meu rosto estará impressa a doçura da esperança moral. Porque sobretudo me tornei toda moral. No entanto quando entrei no avião estava tão sadiamente amoral. Estava, não, estou! Grito-me eu em revolta contra os preconceitos da missionária. Inútil: toda a minha força está sendo usada para conseguir ser frágil. Finjo ler uma revista, enquanto ela lê a Bíblia.

Vamos ter uma descida curta em terra. O aeromoço distribui chicletes. Ela cora mal o rapaz se aproxima.

Em terra sou uma missionária ao vento do aeroporto, seguro minhas imaginárias saias longas e cinzas contra o despudor do vento. Entendo, entendo. Entendo-a, ah, como a entendo e ao seu pudor de existir quando está fora das horas em que cumpre sua missão. Acuso, como a missionariazinha, as saias curtas das mulheres, tentação para os homens. E, quando não entendo, é com o mesmo fanatismo depudorado dessa mulher pálida que facilmente cora à aproximação do rapaz que nos avisa que devemos prosseguir viagem.

Já sei que só daí a dias conseguirei recomeçar enfim integralmente a minha própria vida. Que, quem sabe, talvez nunca tenha sido própria, se não no momento de nascer, e o resto tenha sido encarnações. Mas não: eu sou uma pessoa. E quando o fantasma de mim mesma me toma - então é um tal encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos uma no ombro da outra. Depois enxugamos as lágrimas felizes, meu fantasma se incorpora plenamente em mim, e saímos com alguma altivez por esse mundo afora.

Uma vez, também em viagem, encontrei uma prostituta perfumadíssima que fumava entrefechando os olhos e estes ao mesmo tempo olhavam fixamente um homem que já estava ficando hipnotizado. Passei imediatamente, para melhor compreender, a fumar de olhos entrefechados para o único homem ao alcance da minha visão intencionada. Mas o homem gordo que eu olhara para experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo estava mergulhado no New York Times. E meu perfume era discreto demais.

Falhou tudo.

DUAS HISTÓRIAS A MEU MODO

A narradora relembra duas histórias, que ela escrevera para se divertir, dando ao autor imaginário o nome de Marcel Aymé.

Félicien era um vinicultor francês que produzia o melhor vinho da região, mas não gostava de vinho. Ele e a mulher Leontina escondiam de todos esse fato. Félicien costumava até fingir-se de alcoolizado para esconder que não bebia vinho.

Então o narrador imaginário, Aymé, pára essa história e em Paris conta sobre Etienne Duvilé.

Duvilé, funcionário público em Paris, pobre, que gosta de mesa farta e vinho, e não as tem.

Sua realidade era uma família grande que sonhava com mesa farta e ele, com vinho. Depois do sonho de uma noite de sábado, a sede de vinho piorou.

Ele passou, acordado, a querer não só beber vinho mas beber todo o mundo.

Tinha uma sede tamanha que quase mata o sogro parasita. Duvilé enlouquece e no sanatório só bebe água. Até hoje ele está internado num hospício, tratado com água mineral “que estanca sedes pequenas e não a grande”. Enquanto isso, Félicien pegou gosto pelo vinho.

O PRIMEIRO BEIJO

O texto se encontra na terceira pessoa, o autor narra a história do pequeno rapaz que havia tido sua primeira experiência com o sexo oposto, mesmo que de uma forma surreal.

O autor não se introduz na história, a narra analisando todos os acontecimentos como se estivesse ao lado do protagonista.

Podemos dizer que a realidade do conto consiste na paixão do rapaz por sua primeira namorada, e no ciúme dela. Podemos também entender como real, a dúvida que o menino tem quanto a sua experiência com a estátua.

A dúvida é o sentimento mais presente em toda a construção da narrativa. Talvez a necessidade que o menino estava de beber água o tenha feito sonhar um pouco mais. O encontro dos lábios do menino com os lábios da estátua da mulher nua, despertou sensações que até então não havia conhecido. O fazendo vivenciar experiências marcantes para sua vida como homem.

Neste conto de Clarice Lispector, ela evoluiu como elemento principal a estátua da mulher, que da base para todo o transcorrer do conto, para todo o contexto irreal do conto.

Em "O Primeiro beijo", a autora apenas narra uma situação da qual não fez parte diretamente.

Um rapaz conta para sua namorada que já havia beijado outra mulher. Numa excursão de ônibus escolar, ele estava com muita sede. Quando houve uma parada perto de um chafariz, ele foi o primeiro a chegar para beber. Colou a boca no orifício de onde jorrava a água. Depois que se saciou, abriu os olhos e viu que o orifício era a boca de uma estátua de mulher nua. Afastou-se, ficou olhando para a estátua. Fora seu primeiro beijo. “Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva. (...) Ele se tornara um homem.”
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