quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Caminhos

Estou caminhando... um pé na frente do outro.

Mas... a parada não faz parte do caminhar?

terça-feira, 23 de setembro de 2008

...


Guitarras iluminam
longa decidida estrada
movimentos beijos ereções
rapidinhas ... gozo.

(Tetê Macambira)

ficar


oi.
msn.
não.
...........
talvez.
sol.
bis.
tris.
............... xau (?)

Tempo espirra


Espirros de gato.
O sol reaparece, vingativamente
E a FUNCEME previra mais chuvas.
Ah... adoro poder contar
com serviços meteorológicos;
é só perguntar ao meu nariz:
espirro de gato?
o clima vai mudar.

domingo, 14 de setembro de 2008

"O Moço do SAxofone", de Lygia Fagundes Telles



O moço do saxofone


Lygia Fagundes Telles


Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na pensão da tal madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que ficou velha inventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o que me contou o James, um tipo que engolia giletes e que foi o meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá. Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía palitando os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve até uma vez uma dona que mandei andar só porque no nosso primeiro encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou um palitão entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeito que eu podia ver até o que o palito ia cavucando. Bom, mas eu dizia que no tal frege-mosca eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se enroscando nas pernas da gente. E tinha a música do saxofone.

Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava.

— O que é isso? — eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia de pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelão, tão forte chegava a música até nossa mesa. Quem é que está tocando?

— É o moço do saxofone.

Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China.

— E o quarto dele fica aqui em cima?

James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabeça e abriu mais a boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo. Soprou um bocado de tempo a fumaça antes de responder.

— Aqui em cima.

Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de bilhetes. Esperei que ele desse cabo da batata, enquanto ia enchendo meu garfo.

— É uma música desgraçada de triste — fui dizendo.

— A mulher engana ele até com o periquito — respondeu James, passando o miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. — O pobre fica o dia inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece.

— Deitou com você?

— É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se cortar...

Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma mão tapando, os sons espremidos saindo por entre os dedos. Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na vila, mas não agüentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei ela na carroceria e corri como um louco para chegar o quanto antes, apavorado com a idéia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora.

— Parece gente pedindo socorro — eu disse, enchendo meu copo de cerveja. — Será que ele não tem uma música mais alegre?

James encolheu o ombro.

— Chifre dói.

Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher.

—- Mas por quê? — perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na vida de ninguém, mas era melhor ouvir o tro-ló-ló do James do que o saxofone.

— Uma mulher como ela tem que ter seu quarto — explicou James, tirando um palito do paliteiro. — E depois, vai ver que ela reclama do saxofone.

— E os outros não reclamam?

— A gente já se acostumou.

Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo. Um anão, pensei. Assim que saí do reservado dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado, porque tinha sido rápido demais. E já descia a escada quando ele passou de novo na minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado.

— Pode me dizer de onde vem tanto anão? — perguntei à madame, e ela riu.

— Todos artistas, minha pensão é quase só de artistas...

Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a empilhar almofadas nas cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone. Anão me enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por detrás, palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de esbarrar em mim.

— Licença?

Não precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim, mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha. De repente riu e apareceu uma covinha no queixo. Pomba, que tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto.

— A que horas é a janta? — perguntei para a madame, enquanto pagava.

— Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos costumam comer às oito — avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a dona de vermelho. — O senhor gostou da comida?

Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia ainda um velhote de barbicha, que era professor parece que de mágica e o anão de roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio um prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou a falar então de uma briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou a tocar.

— Sim senhor — eu disse e James pensou que eu estivesse falando na tal briga.

— O pior é que eu estava de porre, mal pude me defender!

Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei os outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio.

— Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca?

James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta. Decerto preferia o assunto do parque.

— Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente — resmungou ele, tirando um palito. — Fico com pena, mas às vezes me dá raiva, corno besta. Um outro já tinha acabado com a vida dela!

Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido. De novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não sei mais para quem.

— Não topo isso, pomba.

— Isso o quê?

Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máximo trancados no quarto e eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto o prato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aquela chateação.

— O café é fresco? — perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado da mesa com um pano encardido como a cara dele.

— Feito agora.

Pela cara vi que era mentira.

— Não é preciso, tomo na esquina.

A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para aporta, porque tive o pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o aninho de gata de telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do que o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abotoando o paletó. Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua.

— Sim senhor!

— Sim senhor o quê? — perguntou James.

— Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que ela aparece, ele pára. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa.

James pediu outra cerveja. Olhou para o teto.

— Mulher é o diabo...

Levantei-me e quando passei junto da mesa dela, atrasei o passo. Então ela deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos.

— Ora, não precisava se incomodar...

Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume.

— Amanhã? — perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. — Às sete, está bem?

— É a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe.

Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que estava ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame viesse me perguntar se eu estava gostando da comida. No dia seguinte cheguei às sete em ponto, chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulatinho já amontoava nas cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada sem fazer barulho, me preparando para explicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém. Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando um saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra. Não parecia nem espantado nem nada, só me olhava.

— Desculpe, me enganei de quarto — eu disse, com uma voz que até hoje não sei onde fui buscar.

O moço apertou o saxofone contra o peito cavado.

— E na porta adiante — disse ele baixinho, indicando com a cabeça.

Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que situação, pomba. Se pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida. Ofereci-lhe cigarro.

— Está servido?

— Obrigado, não posso fumar.

Fui recuando de costas. E de repente não agüentei. Se ele tivesse feito qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela bruta calma me fez perder as tramontanas.

— E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que você não faz nada?

— Eu toco saxofone.

Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu saísse para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de começar com os malditos uivos.

Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver a mão dela segurando a maçaneta para que o vento não abrisse demais. Fiquei ainda um instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que não tomei logo a decisão, ela esperando e eu parado feito besta, então, Cristo-Rei!? E então? Foi quando começou bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anões metido num impermeável, desviei de outro, que já vinha vindo atrás e me enfurnei no caminhão. Escuridão e chuva. Quando dei a partida, o saxofone já subia num agudo que não chegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu meio desembestado, num arranco.


O texto acima foi publicado no livro "Antes do Baile Verde", José Olympio Editores - Rio de Janeiro, 1979, e relacionado entre "Os cem melhores contos brasileiros do século", uma seleção de Ítalo Moriconi, Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 233.

Conheça Lygia Fagundes Telles e sua obra visitando "Biografias".

"Bliss", de Katherine Mansfield



Felicidade
(Bliss)¹

Katherine Mansfield


Embora Bertha Young já tivesse trinta anos, ainda havia momentos como aquele em que ela queria correr, ao invés de caminhar, executar passos de dança subindo e descendo da calçada, rolar um aro, atirar alguma coisa para cima e apanhá-la novamente, ou ficar quieta e rir de nada: rir, simplesmente.

O que pode alguém fazer quando tem trinta anos e, virando a esquina de repente, é tomado por um sentimento de absoluta felicidade — felicidade absoluta! — como se tivesse engolido um brilhante pedaço daquele sol da tardinha e ele estivesse queimando o peito, irradiando um pequeno chuveiro de chispas para dentro de cada partícula do corpo, para cada ponta de dedo?

Não há meio de expressar isso sem parecer "bêbado e desvairado?" Ah! como a civilização é idiota! Para que termos um corpo, se somos obrigados a mantê-lo encerrado em uma caixa, como se fosse um violino raro, muito raro?

"Não, isso de violino não é exatamente o que eu quero dizer" — ela pensou, correndo escadas acima e apalpando a bolsa, em busca da chave — que ela esquecera, como sempre — e sacudindo a caixa do correio. "Não é o que eu quero dizer, pois — "obrigada, Mary" — ela entrou no vestíbulo. "A babá voltou?".

"Sim, senhora".

"E as frutas?".

"Sim, senhora. Veio tudo".

"Traga as frutas para a sala de jantar. Vou dar um arranjo nelas antes de subir".

Estava escuro e muito frio na sala de jantar. Mesmo assim, Bertha tirou o casaco; não podia tolerar por mais tempo o aperto da roupa, e o ar frio penetrou em seus braços.

Dentro do peito, no entanto; havia ainda aquele ponto brilhante, incandescente, de onde saía uma chuva de pequenas fagulhas. Era quase insuportável. Ela mal tinha coragem de respirar, por medo de atiçar aquele fogo ainda mais; contudo, respirava fundo... fundo. Quase não tinha coragem de olhar-se no espelho frio; mas olhou, e ele mostrou-lhe uma mulher radiante, com lábios trêmulos, sorridentes, grandes olhos escuros e um ar de quem está à espera de que alguma coisa... divina aconteça. Ela sabia que iria acontecer infalivelmente.

Mary trouxe as frutas em uma bandeja, e também uma tigela de louça e uma travessa azul, muito linda, com um brilho estranho, como se estivesse mergulhada em leite.

"Quer que eu acenda a luz, senhora?".

"Não, obrigada. Ainda posso ver bastante bem".

Havia tangerinas, laranjas e maçãs, misturadas com o vermelho dos morangos. Algumas pêras amarelas, lisas como seda, uvas brancas, cobertas por uma florescência prateada, e um grande cacho de uvas roxas. Estas últimas, ela havia comprado para combinar com o tapete novo da sala de jantar. Sim, aquilo parecia bastante afetado e absurdo, mas era realmente a razão pela qual ela as tinha comprado. Na loja, havia pensado: "Preciso de algumas frutas cor de púrpura para aproximar o tapete da mesa." E na ocasião isto pareceu fazer muito sentido.

Terminado o arranjo, duas pirâmides de forma arredondada, ela se colocou a certa distância, para ver o efeito — e estava realmente muito curioso, pois a mesa escura parecia dissolver-se na luz fosca e tanto a tigela de louça como a travessa azul pareciam flutuar no ar. Isso, é claro, naquele estado de espírito que ela se encontrava, era tão incrivelmente belo... Ela começou a rir.

"Não, não. Estou ficando histérica". Pegou sua bolsa e seu casaco e subiu correndo para o quarto da filha.

A babá estava sentada ao lado de uma mesa baixa dando o jantar da pequena B., depois do banho. A criança vestia uma camisola de flanela branca e um casaquinho azul, de lã. Os cabelos finos e escuros estavam escovados formando um topetinho engraçado. Ela olhou para cima e começou a pular quando viu a mãe.

"Agora, meu benzinho, coma direito, como uma boa menina", disse a babá, torcendo a boca num jeito bem conhecido dela, como a dizer que ela havia chegado em hora inoportuna, mais uma vez.

"Ela tem estado bem, Nanny?".

"Ela se comportou muito bem durante toda a tarde" murmurou Nanny. "Fomos ao parque; eu me sentei em uma cadeira e tirei-a do carrinho. Um cachorro enorme veio até nós, e pôs a cabeça sobre meus joelhos. Ela agarrou a orelha dele, e puxou. Ah! a senhora devia ter visto."

Bertha teve vontade de perguntar se não seria perigoso deixar que a criança puxasse a orelha de um cão desconhecido, mas não se atreveu. Permaneceu observando-as, os braços largados ao longo do corpo, qual uma menina pobre frente à menina rica com sua boneca.

O bebê olhou para ela outra vez; fixou os olhos nela, sorriu com tanto encanto, que ela não se conteve.

"Ah! Nanny, deixe que eu termine de dar o jantar dela, enquanto você arruma o banheiro".

"Bem, madame. Ela não devia mudar de mãos enquanto come" — disse Nanny, ainda murmurando. "Isso a perturba e muito. É muito provável que ela vá ficar agitada".

Que absurdo! Para que ter uma criança, se ela deve ser guardada — não em uma caixa, como um violino raro, mas nos braços de uma outra mulher?

"Não, é assim que eu quero!".

Muito ofendida, Nanny entregou a criança.

"Bem, não a excite depois da comida. A senhora sabe que a excita, madame. E depois ela me dá um trabalho!".

Graças a Deus! Nanny saiu do quarto, levando as toalhas de banho.
"Agora eu a peguei para mim, minha coisinha preciosa" — disse Bertha, enquanto o bebê se inclinava para ela.

A criança comeu fazendo festa, abrindo a boca para receber a colher e depois agitando as mãos. Às vezes prendia a colher na boca e outras, logo que Bertha enchia a colher, lançava a comida aos quatro ventos.

Terminada a refeição, Bertha virou-se para a lareira.

"Você é linda, muito linda!" disse, beijando seu bebê. "Sou louca por você".

E, realmente, ela a amava tanto! — Seu pescoço, quando ela o inclinava para a frente, os artelhos delicados, quase transparentes à luz do fogo... Todo aquele sentimento de felicidade voltou e, ainda uma vez, Bertha não sabia como expressar essa sensação, nem o que fazer com ela.

"Telefone para a senhora" — disse Nanny, voltando em triunfo e pegando a sua criança.

Bertha desceu correndo. Era Harry.

"Ah, é você, Ber? Olhe, vou chegar tarde. Tomarei um táxi e irei tão depressa quanto puder; mas sirva o jantar dez minutos mais tarde, sim? Tudo bem?".

"Sim, perfeitamente. Ah, Harry!".

"Sim?".

O que tinha ela para dizer? Nada. Queria apenas prolongar aquele contato. Não podia só gritar absurdamente: "O dia hoje foi tão maravilhoso!"

"O que é?" — tornou a voz de longe.

"Nada. Entendu" — disse Bertha, colocando o fone no lugar e pensando o quanto a civilização é idiota.

Eles tinham convidados para o jantar: os Norman Knights, um casal muito distinto — ele estava abrindo um teatro e ela tinha muito entusiasmo por decoração de interiores; um jovem, Eddie Warren, que acabava de publicar um pequeno livro de poemas é a quem todo mundo vinha convidando para jantar, e um "achado" de Bertha, uma moça chamada Pearl Fulton. O que ela fazia, Bertha ignorava. Haviam-se encontrado no clube e Bertha se apaixonara por ela; isso sempre acontecia quando ela encontrava mulheres bonitas que revelassem algo incomum em sua personalidade.

O que a intrigava era que, embora tivessem estado juntas freqüentemente e conversado muito, Bertha não podia ainda ter um conceito formado sobre Pearl Fulton. Até certo ponto, ela era de uma franqueza rara e maravilhosa, mas além desse ponto ela não passava.

E haveria alguma coisa além disso? Harry dizia que não. Julgava-a um tanto maçante e "fria como todas as louras, com um toque, talvez, de anemia cerebral". Mas Bertha não concordava com isso; pelo menos, ainda não.

"Não, sua maneira de sentar-se, com a cabeça levemente inclinada para o lado, sorridente, esconde alguma coisa, Harry, e eu hei de descobrir que coisa é essa".

"O mais provável é que seja estômago pesado", disse Harry.

Ele se empenhava em pegar Bertha pelo pé com respostas daquele teor... "fígado gelado, minha querida", ou "pura flatulência", ou "doença dos rins"... e assim por diante. Por alguma estranha razão, Bertha gostava disso e quase o admirava por falar desse modo.

Ela entrou na sala de estar e acendeu a lareira; depois pegou as almofadas que Mary havia arrumado com todo cuidado e atirou-as de volta aos sofás e cadeiras. Foi o bastante para dar vida à sala. No momento de atirar a última almofada, ela se surpreendeu apertando-a contra si apaixonadamente. Mas isso não apagou o fogo em seu peito. Ah, pelo contrário!

As janelas da sala abriam-se para um balcão, e davam para um jardim. No fundo, perto do muro, havia uma esguia pereira, toda florida, esplêndida, que permanecia imóvel contra o céu verde-jade. Bertha não podia deixar de sentir, mesmo a essa distância, que não havia um só botão por abrir, nem uma pétala murcha. Embaixo, nos canteiros do jardim, as tulipas vermelhas e amarelas, carregadas de flores, pareciam inclinar-se na penumbra: Um gato cinzento, arrastando-se de barriga, esgueirava-se através do gramado, e um gato preto, como se fora sua sombra, ia logo atrás. Ela tremeu, curiosamente, ao vê-los tão atentos e rápidos.

"Gato é um bicho horrível!" — ela pensou, e, saindo da janela, começou a andar de um lado para outro. Como era forte o perfume dos junquilhos dentro da sala quente! Forte demais? Não, não demais. E então, como que vencida, ela atirou-se sobre um sofá e cobriu os olhos com as mãos.

"Estou muito feliz, muito feliz" — murmurou.

E parecia-lhe ver por entre as pálpebras a linda pereira, com aquela abundância de flores, como símbolo de sua própria vida.

Realmente — realmente — ela tinha tudo. Era jovem, Harry e ela se amavam como nunca, davam-se muito bem e eram realmente bons companheiros. Ela tinha um adorável bebê. Não precisavam se preocupar com dinheiro. Tinham esta casa e este jardim, que eram absolutamente satisfatórios. E amigos modernos, interessantes; amigos escritores, pintores e poetas ou pessoas voltadas para as questões sociais, justo a espécie de amigos que eles queriam. Além disso, havia os livros, havia a música, e ela encontrara aquela costureirinha maravilhosa, sua cozinheira nova fazia omeletes deliciosos, e eles iam fazer uma viagem ao exterior, no verão.

"Estou ficando maluca! Maluca!" Ela sentou-se, mas sentiu-se inteiramente atordoada, inteiramente bêbada. Devia ser a primavera.

Sim, era a primavera. Agora, ela sentia-se tão cansada que mal poderia subir a escada, para vestir-se.

Um vestido branco, um fio de contas de jade, sapatos verdes e meias. Era coincidência. Ela havia decidido esse arranjo horas antes de ter estado à janela da sala.

As dobras de sua saia produziram um suave farfalhar ao deslizar rente ao chão, quando ela foi à porta de entrada e beijou a senhora Norman Knight, que estava tirando o mais estranho casaco cor de laranja, com uma fileira de macacos pretos em volta da barra, subindo na parte da frente.

"Por quê? Por quê?! Por que a classe média é tão tola, tão completamente desprovida de senso de humor?! É por pura sorte que estou aqui, minha querida, e Norman é meu anjo protetor. Meus queridos macacos chocaram tanto as pessoas do trem que elas simplesmente se puseram a me devorar com os olhos. Não riram, não estavam achando graça, o que eu teria gostado. Apenas olharam-me fixamente e me fuzilaram com os olhos."

"Mas o melhor de tudo" — disse Norman, apertando contra o olho o monóculo de aro de tartaruga — "você não se importa que eu conte, Face, se importa?" (Na intimidade eles se chamavam Face e Mug.) "O melhor de tudo foi quando ela, furiosa, virou-se para a mulher que estava ao seu lado e disse: "A senhora nunca viu um macaco antes?".

"Ah, sim" — a senhora Norman Knight juntou—se aos que riam. "Não foi mesmo genial?".

E, mais engraçado ainda era que agora, sem o agasalho, ela parecia um macaco muito inteligente, cujo vestido de seda amarela fora feito com cascas de bananas. E os brincos de âmbar pareciam duas nozes bamboleantes.

"It is a sad, sad fall!"² — disse Mug, parando em frente ao carrinho do bebê. "When the perambulator comes into the hall" — e ele deixou de lado o resto da citação.

A campainha tocou. Era o esbelto e pálido Eddie Warren, em estado de completa desgraça, como sempre.

"É esta casa mesmo, não é?" — perguntou ele.

"Bem, acho que sim. Pelo menos assim o espero" — disse Bertha, com animação.

"Acabo de ter uma experiência muito desagradável com um motorista de táxi. Ele era terrivelmente sinistro. Não pude conseguir que ele parasse. Quanto mais eu lhe chamava a atenção e lhe pedia que parasse, mais depressa ele ia. E à luz do luar aquela figura bizarra, com a cabeça achatada, debruçando-se sobre o minúsculo volante...".

Ele estremeceu, tirando um imenso cachecol de seda branca. Bertha notou que ele usava meias também brancas, muito vistosas.

"Mas, que coisa horrível!" disse ela em voz muito alta.

"Sim, foi mesmo" — disse Eddie, seguindo-a até a sala de estar. — "Eu me vi decolando para a eternidade num táxi alado".

Ele conhecia os Norman Knight. Na verdade ia escrever uma peça para Norman Knight, quando o esquema do teatro começasse a funcionar.

"Bem, Warren, como está a peça?" — perguntou Norman Knight, deixando cair o monóculo e dando, assim, oportunidade ao olho de vir à tona, antes de ser ocultado outra vez.

A Sra. Knight interveio: "Mas que meias lindas, Sr. Warren!"

"Que bom que a senhora tenha gostado delas", disse ele, olhando para os pés. "Parece que elas ficaram muito mais brancas desde que a lua apareceu". Virou para Bertha o rosto magro e triste. "Há uma lua, a senhora sabe?".

Ela teve vontade de gritar: "É claro que sei! Muitas vezes, freqüentemente!".

Ele era, na verdade, uma pessoa muito atraente. Mas atraentes eram também Face, agachada em frente ao fogo, no seu vestido de cascas de bananas, e Mug, fumando um cigarro e dizendo, enquanto batia as cinzas: "Por que o noivo está demorando tanto?".

"Ei-lo que chega!".

A porta da frente abriu e fechou com estrondo. Harry gritou: "Alô, pessoal. Volto em cinco minutos!" Subiu correndo a escada. Bertha não pôde deixar de sorrir; ela sabia como ele gostava de agir sempre sob alta pressão. Afinal, que importância teriam cinco minutos a mais? Mas ele sustentava para si mesmo que cinco minutos tinham, sim, muita importância. E fazia questão, depois, de chegar e ficar na sala numa postura serena, tranqüila.

Harry tinha um tal gosto pela vida... Ah, como ela apreciava isso nele! E sua paixão pela luta, por encontrar em cada coisa que se lhe opunha um outro teste para seu poder e sua coragem, também isso ela compreendia. Mesmo quando, vez por outra, ele pudesse parecer talvez um tanto ridículo, aos olhos dos que não o conheciam bem... Pois às vezes ele se atirava em batalhas que não existiam... Ela conversava e ria, realmente esquecida, até a chegada dele à sala (tal como ela imaginara), de que Pearl Fulton não viera ainda.

"Será que a Pearl esqueceu?".

"Espero que sim", disse Harry. "Ela tem telefone?" "Está chegando um táxi". E Bertha sorriu, com aquele divertido ar de posse que sempre assumia quando suas descobertas femininas eram novas e misteriosas. "Ela vive em táxis".

"Assim vai engordar" — disse Harry com frieza, tocando a campainha para que o jantar fosse servido. "Um perigo assustador para mulheres louras".

"Harry, não diga isso" — advertiu Bertha, rindo.

Veio outro breve momento, enquanto esperavam rindo e conversando, só um pouquinho à vontade demais, um pouquinho descontraídos demais. Aí chegou Pearl Fulton, toda prateada, com uma tira de prata prendendo seus cabelos loiros, sorrindo, com a cabeça pendendo um pouco para o lado.

"Estou atrasada?".

"Não, absolutamente" — disse Bertha, pegando-a pelo braço. "Venha comigo". E entraram na sala de jantar.

O que havia naquele braço frio, que podia avivar — começar a atiçar — atiçar — o fogo da felicidade com o qual Bertha não sabia o que fazer?

Pearl Fulton não olhava para ela; quase nunca olhava as pessoas diretamente. Suas pálpebras pesadas estavam sempre semicerradas, e em seus lábios um estranho sorriso ia e vinha, como se ela, em vez de ver, preferisse ouvir. Mas Bertha soube, de repente, como se o mais longo, o mais íntimo olhar tivesse sido trocado entre elas, como se tivessem dito uma à outra "Você também?", que Pearl, ao mexer a bela sopa vermelha em seu prato cinza, sentia exatamente o que ela estava sentindo.

E os outros? Face e Mug, Eddie e Harry, suas colheres subindo e descendo, tocando os lábios com os guardanapos, fazendo bolotas com miolo de pão, brincando com garfos e copos, conversavam.

"Eu a encontrei no show do Alpha — uma figurinha muito esquisita. Ela havia não apenas cortado rente os cabelos, mas também parecia ter tirado um bom pedaço dos braços e das pernas, do pescoço e do pobre narizinho também".

"Ela não é muito liée a Michael Ost?".

"O homem que escreveu Love in False Teeth?³".

"Ele quer escrever uma peça para mim. Um ato. Um homem. Ele decide suicidar-se; discute todas as razões pró e contra. E exatamente quando chega a uma conclusão sobre o que fazer... cai o pano. Uma idéia nada má".

"Como ele vai chamá-la? Dor de estômago?".

"Acho que encontrei a mesma idéia numa revistinha francesa inteiramente desconhecida na Inglaterra".
Não, eles não compartilhavam. Mas eram queridos — queridos — e ela gostava muito de tê-los ali, em sua mesa, oferecendo-lhes comida e vinho deliciosos. Na verdade, ela desejava dizer-lhes o quanto eles eram encantadores e que grupo decorativo formavam; como eles pareciam avivar uns aos outros e como eles lhe faziam lembrar uma peça de Tchekov!

Harry estava gostando do jantar. Era próprio dele — bem, não sua natureza, exatamente, e não, certamente, uma pose — bem, um pouco de cada coisa — falar sobre comida e alardear sua paixão "impudica por carne branca de lagosta e o verde dos sorvetes de pistache, verdes e frios como pálpebras de bailarinas egípcias".

Quando ele levantou os olhos para ela e disse: "Bertha, este soufflé está maravilhoso!", ela quase poderia ter chorado, com prazer infantil.

Ah! O que fazia com que ela se sentisse tão terna com todo mundo, hoje? Tudo era bom, tudo estava certo. Tudo o que acontecia parecia encher de novo até a borda sua taça de felicidade.

E havia ainda, no fundo de sua mente, a pereira. Ela estaria prateada, agora, sob a luz da lua do pobre Eddie, prateada como Pearl Fulton, que lá estava, sentada, fazendo girar uma tangerina com seus dedos finos e tão pálidos que um raio de luz parecia sair deles.

O que, na verdade, não podia compreender, o que era miraculoso, era como percebera o estado de espírito de Pearl Fulton de modo tão rápido e exato. Porque ela não tinha a menor dúvida de estar certa e, no entanto, em que podia se basear? Menos que nada.

"Acho que isso acontece muito, muito raramente entre mulheres. Nunca entre homens", pensou Bertha. "Mas enquanto eu estiver fazendo o café, talvez ela me "dê um sinal", da sala de jantar."

O que queria dizer com isto ela não sabia, e o que viria a acontecer ela não podia imaginar.

Enquanto pensava, ela se via conversando e rindo. A vontade de rir fazia-a conversar.

"Eu preciso rir ou morrer".

Mas, ao notar o hábito engraçado que tinha Face de empurrar alguma coisa pelo decote abaixo — como se ela tivesse ali uma reserva de nozes ou algo assim — teve de fechar as mãos com tanta força a ponto de enterrar as unhas nas palmas das mãos, para não rir demais.

Tinham acabado, por fim. "Venham ver minha máquina de fazer café", disse Bertha.

"Só a cada quinze dias temos uma nova máquina de fazer café nesta casa", disse Harry. Desta vez Face pegou Bertha pelo braço; Pearl Fulton inclinou a cabeça e seguiu-as.

O fogo tinha-se reduzido na sala, para tornar-se um crepitante e rubro "ninho de filhotes de Fênix", segundo Face.

"Não acendam as luzes, por enquanto. Está tão agradável!". Ela agachou-se perto do fogo. Sempre tinha frio... "quando está sem sua jaqueta de flanela vermelha de mico de realejo, é claro", pensou Bertha.

Naquele momento Pearl Fulton "deu o sinal".

"Vocês têm um jardim?" disse a tranqüila voz sonolenta. Foi tão refinado da parte dela que tudo o que Bertha pode fazer foi obedecer; atravessou a sala, afastou as cortinas e abriu aquelas longas janelas.
"Lá", suspirou.

E as duas mulheres permaneceram de pé, uma ao lado da outra, olhando para a esguia árvore florida. Embora o ambiente estivesse tão tranqüilo, a pereira parecia a chama de uma vela a alongar-se, apontar para o alto, tremer no ar brilhante, tornando-se cada vez mais alta enquanto elas olhavam, até quase tocar os bordos prateados da lua redonda.

Quanto tempo elas ficaram ali? Ambas como que presas àquele círculo de luz sobrenatural, compreendendo-se perfeitamente uma à outra, criaturas de um outro mundo, e perguntando-se o que iriam fazer neste mundo com todo aquele alegre tesouro de felicidade que queimava em seus peitos e caía, como flores de prata, de seus cabelos e mãos?

Para sempre? Por um momento? E Pearl Fulton pareceu ter murmurado: "Sim, isso mesmo." Ou Bertha sonhara isto?

Então a luz foi acesa, Face fazia o café e Harry dizia: "Minha querida Senhora Norman Knight, não me pergunte pe!a minha filha. Eu jamais a vejo. Não terei por ela o menor interesse até o dia em que tenha um amante", e Mug tirou o monóculo, e tornou a colocá-lo, e Eddie Warren tomou seu café e colocou a xícara no lugar com um rosto angustiado, como se ele tivesse engolido uma aranha e percebido o que fizera.

"O que eu quero é dar lugar aos outros jovens. Acho que Londres está fervilhando com excelentes peças ainda não escritas. Quero lhes dizer: Aqui está o teatro; vão em frente!".

"Sabe, querida? Vou decorar uma sala para os Jacob Nathan. Estou muito tentada a fazer um projeto tipo peixefrito, com o encosto das cadeiras em forma de frigideiras e lindas batatas fritas espalhadas por toda parte nas cortinas".

"A dificuldade com nossos autores jovens é que eles são ainda demasiadamente românticos. Ninguém deve se lançar ao mar contando que não vai enjoar e dispensando uma bacia. Bem, por que não terão eles a coragem de usar essas bacias?".

"Um poema chocante sobre uma menina que foi violentada por um mendigo sem nariz, num pequeno bosque".

Pearl Fulton sentou-se à vontade na poltrona mais baixa e mais funda, e Harry ofereceu cigarros a todos. Pela maneira como ele se pôs à frente dela, sacudindo a caixa de prata dizendo asperamente "Egípcio? Turco? Virginiano? Estão todos misturados", Bertha constatou que ela não apenas o aborrecia; ele realmente não gostava dela. E deduziu, pelo modo com que Pearl disse "Obrigada, não vou fumar", que ela também o sentira, e se magoara.

"Não tenha essa antipatia por Pearl, Harry! Você está redondamente enganado a respeito dela. Ela é maravilhosa, maravilhosa! Além disso, como você pode pensar de modo tão diferente de mim, sobre alguém que significa tanto para mim? Tentarei contar-lhe mais tarde, quando estivermos na cama, o que está acontecendo. O que eu e ela estamos compartilhando".

A essas últimas palavras, alguma coisa estranha e quase aterrorizante penetrou na mente de Bertha. E essa coisa cega e sorridente sussurrou-lhe: "Logo essas pessoas irão embora. A casa ficará tranqüila, tranqüila. As luzes serão apagadas. E você e ele ficarão a sós um com o outro, no quarto escuro, a cama quente...".

Ela saltou da cadeira e correu para o piano.

"Que pena que ninguém toque!" — bradou. "Que pena que ninguém toque!".

Pela primeira vez na vida Bertha Young desejou seu marido.

Ah! Ela o amava! Ela o amara sempre, é claro, mas com outras formas de amor, não com o que sentia agora. E também, é claro, ela havia compreendido que ele era diferente. Haviam discutido isto inúmeras vezes. Ela havia se afligido horrivelmente, a princípio, ao descobrir sua própria frigidez, mas, com o passar do tempo, isso deixara de incomodá-la. Havia tanta franqueza entre os dois, eles eram tão bons companheiros! Nisso estava a grande vantagem de serem modernos.

Mas agora — era com tesão! Com tesão! A palavra doía em seu corpo em brasa. Era a isto que o seu sentimento de felicidade tinha levado? Mas então, então...

"Querida" — disse a Sra. Knight —, "é uma pena, mas você sabe que somos vítimas do tempo e do horário do trem. Moramos em Hampstead. Foi uma noite tão agradável!".

"Vou acompanhá-los até a porta", disse Bertha. "Foi um prazer tê-los conosco, mas vocês não podem perder o último trem. É tão desagradável isto, não é mesmo?".

"Antes de sair, você aceita um uísque, Knight?" convidou Harry.

"Não, obrigado, amigo velho".

Àquelas palavras, Bertha despediu-se dele com um forte aperto de mão.

"Boa-noite, até outra vez!" gritou ela do alto da escada, sentindo como se uma parte de si estivesse se despedindo deles para sempre.

Ao chegar à sala, encontrou os demais convidados preparando-se para sair.

"Então, você pode fazer parte do trajeto em meu táxi...".

"Eu lhe agradeço muitíssimo por não ter outra vez de enfrentar sozinho uma corrida de táxi depois da terrível experiência da vinda até aqui".

"Vocês podem tomar um táxi logo no fim da rua, há um ponto lá. Não terão de andar mais que uns poucos metros".

"É mesmo? Que bom! Vou vestir meu casaco".

Pearl Fulton encaminhou-se para o vestíbulo e Bertha a ia seguindo, quando Harry quase puxou-a para trás.

"Permita-me ajudá-la".

Bertha viu que ele tinha se arrependido de sua rudeza e deixou-o à vontade. Em certas coisas ele era um menino — tão impulsivo — tão simples.

Ela e Eddie foram deixados perto da lareira.


"Você já viu o novo poema de Bilke "Mesa de Convidado"?" perguntou Eddie, baixo. "É tão maravilhoso! Na última Antologia. Você tem um exemplar? Gostaria muito de mostrá-lo a você. Começa por uma belíssima linha: "Por que deve ser sempre sopa de tomate?".

"Sim", disse Bertha. Em silêncio, encaminhou-se para uma mesa, no lado oposto à porta, e Eddie acompanhou-a, também silencioso. Ela pegou o livro e entregou-o ao amigo; não tinham feito o menor ruído.

Enquanto ele o folheava, ela levantou a cabeça, olhando para o vestíbulo. E viu... Harry com o agasalho de Pearl Fulton nos braços e esta, de costas para ele, com a cabeça inclinada. Ele atirou o casaco para um lado, colocou as mãos nos ombros dela, e virou-a com violência para ele. Seus lábios diziam: "eu te adoro", e Pearl pousou os dedos finos sobre o rosto dele e sorriu aquele seu sorriso sonolento. As narinas de Harry tremiam; os lábios ficaram repuxados para trás, numa crispação horrível, enquanto ele sussurrava: "amanhã" — e, piscando os olhos, Pearl disse: "sim".

"Aqui está", disse Eddie. "Por que deve ser sempre sopa de tomate?". É uma verdade tão profunda, não acha? Sopa de tomate é tão incrivelmente eterna!".

"Se você preferir", dizia a voz de Harry, bem alto, no vestíbulo, "posso chamar um táxi pelo telefone".

"Não é necessário", disse Pearl Fulton e, chegando até Bertha, estendeu-lhe os dedos delicados.

"Até logo. Muito obrigada."

"Até logo", disse Bertha.

Pearl conservou os dedos da amiga entre os seus por um momento.

"Como é linda, a sua pereira", disse ela, baixinho.

E se foi, seguida por Eddie, como o gato preto acompanhando o gato cinzento.

"Vou fechar a casa", disse Harry, estranhamente tranqüilo e contido.

"Sua linda pereira...".

Bertha correu para as janelas largas do jardim. "Deus! O que vai acontecer agora?".

Mas a pereira estava tão linda como sempre, tão imóvel e florida como sempre.

¹ Tal como saudade em português, bliss é uma palavra inglesa sem correspondente exato em outras línguas. Êxtase, felicidade total, euforia, há muitas traduções possíveis, mas nenhuma atende a todas as nuances da palavra original. Preferimos felicidade, simplesmente, por ser a opção mais simples, não excessiva, embora fique faltando alguma coisa. (N. da T.).

² "É uma queda triste, muito triste!" Em seguida: "Quando o carrinho do bebê vem para o vestíbulo".

³ "O Amor em Dentes Postiços".


Katherine Mansfield nasceu em 14 de outubro de 1888, em Wellington, Nova Zelândia. Filha de pais ingleses, de 1903 a 1906 estudou na Inglaterra. Voltou a Wellington, onde exerceu atividade literária principiante. Convenceu seu pai a continuar seus estudos na Inglaterra, para lá retornando em 1908. Faz e desfaz no mesmo dia um casamento, em março de 1909, em Londres. Fica grávida, já em outra ligação amorosa. Passa uma temporada na Alemanha com sua mãe, e em junho sofre um aborto. Volta a Londres em 1910 e um ano depois publica In a German Pension, seu primeiro volume de contos. Em meio a uma conturbada vida afetiva, sexual e social, vê seu irmão morrer, em 1915, durante a guerra. Surgem os primeiros acessos de tuberculose. Em 1918 publica seu segundo volume de contos: Prelude. Em 1920, outro volume: Je Ne Parle Pas Français. Em 1921, Bliss and Other Stories. Em 1922, The Garden Party and Other Stories. Com o agravamento da tuberculose, tenta tratar-se na Suíça, em 1922. Morreu no dia 09 de janeiro de 1923, aos 34 anos de idade. Sua consagração ocorreu após a morte. Teve mais de dez títulos póstumos, entre relatos curtos, cartas e diários. Hoje é considerada um dos maiores nomes da literatura inglesa. Dela disse Virginia Woolf, que a considerava o maior nome de contista na língua inglesa: "eu tinha ciúme do que ela escrevia".


O texto acima foi extraído do livro "
Felicidade e Outros Contos", Editora Revan — Rio de Janeiro, 1991, pág. 11, tradução de Julieta Cupertino.

Tudo sobre a vida e a obra da autora em
http://www.nzedge.com/heroes/mansfield.html


Soneto a Katherine Mansfield

Vinicius de Moraes


O teu perfume, amada — em tuas cartas
Renasce, azul... — são tuas mãos sentidas!
Relembro-as brancas, leves, fenecidas
Pendendo ao longo de corolas fartas.

Relembro-as, vou... nas terras percorridas
Torno a aspirá-lo, aqui e ali desperto
Paro; e tão perto sinto-te, tão perto
Como se numa foram duas vidas.

Pranto, tão pouca dor! tanto quisera
Tanto rever-te, tanto!... e a primavera
Vem já tão próxima! ...(Nunca te apartas

Primavera, dos sonhos e das preces!)
E no perfume preso em tuas cartas
À primavera surges e esvaneces.


Vinicius, com este soneto, presta uma homenagem a Katherine Mansfield, nascida da Nova Zelândia e desde há muito considerada uma das melhores escritoras da língua inglesa.

Extraído do livro "Vinicius de Moraes - Poesia Completa e Prosa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1998, pág. 250. Abaixo, a tradução do soneto para a língua inglesa, realizada por Regina Werneck:





Quando a querida Sra. Hay voltou à cidade, depois de ter passado uns dias com os Burnells, mandou para as crianças uma casa de boneca. Era tão grande, que o carroceiro e Pat carregaram-na para o quintal, e ali ficou, em cima de dois caixotes de madeira, junto da porta da despensa. Não havia perigo de se estragar – era verão. Além disso, o cheiro de tinta talvez tivesse passado, no momento de levá-la para dentro. Porque, é verdade, o cheiro de tinta que vinha daquela casa de boneca ("Muita gentileza de parte da velha Sra. Hay, muita gentileza e generosidade"), o cheiro de tinta era bem capaz de fazer alguém ficar seriamente doente, achava a tia Beryl. Até mesmo após ser desembalada. E ao ser...

Lá estava a casa de boneca, de um verde escuro, oleosa, espinafre, realçado com amarelo claro. Suas duas chaminezinhas, coladas no teto, eram pintadas de vermelho e branco, e a porta, brilhando com o seu verniz amarelo, parecia um caramelo. Quatro janelas, janelas de verdade, eram divididas em caixilhos en-vidraçados por uma larga lista verde. Havia, também, um pequeno pórtico pintado de amarelo, com grandes protuberâncias de tinta solidificada pendendo ao longo da sua beirada. Mas que casinha perfeita! Quem é que poderia incomo-dar-se com o cheiro? Fazia parte da alegria, da novidade.

– Alguém abra logo!

O trinco, de um lado, estava fortemente fechado. Pat forçou-o com seu canivete, toda a fachada da casa girou para a frente e... Pronto! Todos olharam juntos, ao mesmo tempo, para a sala de visitas e a sala de jantar, a cozinha e os dois quartos. Aquilo sim que era maneira de se abrir uma casa! Por que todas não se abriam daquele jeito? Era muito mais emocionante do que espiar pela fresta de uma porta e ver um pequeno hall com uma chapeleira e dois guarda-chuvas! Era aquilo – não era? – que você gostaria de saber sobre uma casa ao levar a mão à maçaneta. Talvez fosse assim que, ao dar uma volta silenciosa com um anjo, Deus abrisse as casas, tarde da noite...

– Oooh!

A exclamação das filhas dos Burnells soou como se elas estivessem desesperadas. A casa era tão maravilhosa! Demais para elas! Nunca tinham visto nada igual na vida. Todos os cômodos, forrados com papel de parede! Havia quadros nas, paredes, pintados no papel, com molduras douradas e tudo. Um carpete vermelho cobria o assoalho inteiro, salvo o da cozinha. Cadeiras de feltro vermelho na sala de visitas, verde na sala de jantar. Mesas, camas com lençóis e colchas de verdade, um berço, um fogão, um aparador com pratinhos e um jarro grande. O que mais agradou a Kezia, porém, o que ela adorou, foi o lampião, no centro da mesa da sala de jantar. Um lindo lampiãozinho, cor de âmbar, com um globo branco. Já estava até cheio, prontinho, embora, é claro, não pudesse ser aceso. Mas havia dentro dele algo que parecia querosene e que, sedido, se mexia.

Papai e mamãe bonecos estavam encarrapachados, imóveis, como se houvessem desmaiado, na sala de jantar, e seus dois filhos, que dormiam no andar de cima, eram grandes demais para a casa de boneca. Pareciam não pertencer a ela. Mas o lampião era perfeito. Sorria para Kezia, dizendo "eu moro aqui". O lampião era de verdade.

Na manhã seguinte, indo para a escola, as filhas dos Burnells não conseguiam andar tão depressa quanto gostariam. Elas estavam loucas de vontade de contar para todo o mundo, de descrever, de... em suma, de gabar-se da casa de boneca delas antes que a campainha tocasse.

– Sou eu que vou contar – disse Isabel, – porque eu sou a mais velha. E vocês duas podem completar depois. Mas eu conto primeiro. Não havia o que contestar. Isabel era uma mandona, sempre tinha razão, e Lottie e Kezia conheciam muito bem os poderes que detinha por ser a mais velha. Elas passaram céleres no meio dos ranúnculos da beira da estrada e não disseram nada.

– E sou eu que vou escolher quem a vê primeiro. Mamãe disse que posso.

Tinha sido combinado que, enquanto a casa de boneca permanecesse no quintal, podiam convidar as meninas da escola, duas de cada vez, para virem vê-la. Não podiam ficar para o chá, é claro, nem perambular dentro de casa. Só ficar quietinhas, no quintal, enquanto Isabel mostrava as maravilhas dela, e Lottie e Kezia permaneciam olhando, deleitadas...

No entanto, embora se apressassem o mais que podiam, ao chegarem à cerca coberta de pixe do pátio dos meninos, o sinal tocou. Tiveram tempo apenas de tirar rapidamente os chapéus e entrar na fila antes do início da chamada. Azar. Isabel tentou compensar assumindo uns ares importantes e misteriosos, cochichando, com a mão escondendo a boca, para as meninas que estavam perto dela:

– Preciso contar uma coisa para vocês na hora do recreio.

Chegou a hora do recreio, e cercaram Isabel. As meninas da turma quase brigaram para passar os braços em torno dela, puxá-la à parte, sorrir bajuladoramente, ser a sua amiga especial. Ela concedeu uma verdadeira audiência debaixo dos gigantescos pinheiros, num canto do pátio. Acotovelando-se, dando risadinhas, as meninas comprimiam-se. As duas únicas que se mantinham fora do círculo eram as que sempre ficavam de fora, as Kelveys. Elas não fariam a besteira de chegar perto das Burnells.

O caso era que a escola em que as Burnells estavam não era absolutamente aquela que os pais teriam escolhido, se houvesse possibilidade de escolha. Mas não havia. Era a única escola num raio de várias milhas. Em conseqüência, as meninas do lugar – as filhas do juiz, do doutor, do dono do armazém, do leiteiro – eram obrigadas a misturar-se. Para não falar de igual número de meninos grosseiros, broncos. Mas a linha divisória tinha de ser traçada em algum ponto. Este ponto eram as Kelveys. Muitas crianças, inclusive as Burnells, estavam proibidas de falar com elas. Passavam pelas Kelveys de cabeça empinada, e, como elas davam o tom geral de comportamento, todo mundo evitava as Kelveys. Inclusive a professora tinha uma voz particular para elas e um sorriso significativo para as outras meninas, quando Lil Kelvey vinha até a sua mesa com um buquê de flores horrivelmente vulgares.

Eram filhas de uma lavadeirazinha despachada e trabalhadora, que batia de porta em porta todos os dias. Uma coisa horrível mesmo. E onde andava o Sr. Kelvey? Ninguém sabia, ao certo. Dizia-se que estava preso. De modo que elas eram filhas de uma lavadeira e de um presidiário. Otima companhia para as filhas dos outros! E tinham mesmo jeito disso! Era difícil entender porque a Sra. Kelvey fazia com que elas dessem tanto na vista assim. Na verdade, vestia-as com "pedaços" que lhe foram dados pelas pessoas para quem trabalhava. Lil, por exemplo, que era uma menina decidida, desembaraçada, sardenta, ia para a escola com um vestido feito de uma avental de sarja verde dos Burnells, com mangas de feltro vermelho feitas com as cortinas dos Logans. O chapéu dela, empoleirado no topo da sua testa alta, era um chapéu de mulher adulta, que pertenceu outrora a Miss Lecky, a gerente dos Correios. Era virado para cima na parte de trás e enfeitado com uma grande pena escarlate. Lil parecia um espantalho! Era impossível não rir dela. E a sua irmãzinha, nossa Else, usava um vestido branco comprido, uma espécie de camisola, e um par de botinas de menino. Mas, vestisse o que quisesse, nossa Else continuaria tendo um aspecto esquisito. Era uma menina magricela, de cabelos curtos e olhos enormes e solenes – uma corujinha branca. Ninguém nunca a tinha visto sorrir. Quase não falava. Vivia agarrada à irmã, sempre grudada num pedaço da saia de Lil. Onde a outra ia, nossa Else ia atrás. No pátio, na estrada a caminho da escola ou voltando para casa, lá vinha Lil na frente e nossa Else agarrada a ela atrás. Somente quando queria alguma coisa, ou estava cansada, nossa Else dava um puxão em Lil, e ela parava e virava para trás. As Kelveys sempre se entendiam.

Agora elas rondavam por perto: ninguém poderia impedi-las de escutar. As meninas viraram-se e sorriram zombeteiramente para elas. Lil, como de costume, dava o seu sorriso abobalhado e envergonhado, e nossa Else limitava-se a ficar olhando.

A voz de Isabel, toda prosa, continuava contando. O carpete fez grande sensação, assim como as camas com lençóis e colchas de verdade, e o fogão, com a portinha do forno.

Quando terminou, Kezia interveio.

– Você se esqueceu do lampião, Isabel.

– Ah é! – disse Isabel. – Tem um lampiãozinho, todo de vidro amarelo com um globo branco, em cima da mesa da sala de jantar. Até parece de verdade.

– O lampião é o melhor de tudo! – exclamou Kezia.

Ela achava que Isabel não estava dando bastante importância ao lampiãozinho. Mas ninguém prestou atenção: Isabel escolhia as duas que iriam voltar para casa com elas, à tarde, para ver a casinha de boneca. Escolheu Emmie Cole e Lena Logan. Sabendo que teriam a sua vez, as outras se desmancharam em gentilezas para com Isabel. Uma a uma, punham o braço em volta da cintura dela e a puxavam à parte. Tinham uma coisa para contar, um segredo.

– Isabel é minha amiga.

Só as pequenas Kelveys se afastaram, esquecidas, sem mais nada para ouvir. Passaram-se os dias, e quanto mais crianças viam a casa de boneca, mais se propagava a sua fama. Tornou-se o único tema, a coqueluche. A única pergunta que se ouvia era:

– Viu a asa de boneca das Burnells? Não é uma graça?

– Você não viu? Ah, eu vi!

Até mesmo a hora do lanche era consagrada a se falar dela. As meninas sentavam-se debaixo dos pinheiros comendo seus grossos sanduíches de carneiro e enormes pedaços de bolo de fubá besuntados com manteiga. Como sempre, as Kelveys ficavam sentadas o mais perto que podiam, nossa Else agarrada a Lil, ouvindo também, enquanto mastigavam seus sanduíches de presunto, embrulhados num jornal empapado de vermelhas manchas de gordura.

– Mamãe – perguntou Kezia um dia, – posso convidar as Kelveys uma vez?

– Claro que não!

– Mas por quê?

– Não amole, Kezia. Você sabe muito bem porquê. Finalmente, todas as meninas tinham visto, menos elas. Naquele dia, o tema esmoreceu. Hora do lanche. As meninas estavam juntas debaixo dos pinheiros e, de repente, ao olharem para as Kelveys comendo no jornal delas, sempre sozinhas, sem- pre ouvindo, sentiram vontade de serem malvadas. Emmie Cole deu início à implicância.

– Lil Kelvey vai ser empregada doméstica quando crescer.

– Oooh, que horror! – fez Isabel Burnell, lançando um olhar cúmplice para Emmie.

Emmie engoliu o seu lanche com um ar cheio de subentendidos e balançou a cabeça para Isabel, como tinha visto sua mãe fazer naquelas ocasiões.

– É verdade... é verdade... é verdade – disse.

Os olhos de Lena Logan chamejaram.

– Vou perguntar a ela – sibilou.

– Melhor não – disse Jessie May.

– Ah, não tenho medo! – exclamou Lena.

De repente, ela soltou um gritinho agudo e pôs-se a dançar diante das coleguinhas.

– Olhem! Olhem para mim! Olhem só para mim! disse.

E esgueirando-se, deslizando, arrastando o pé, ocultando o riso com a mão, Lena foi para cima das Kelveys. Lil ergueu os olhos do seu lanche. Embrulhou rapidamente o resto dele. Nossa Else parou de mastigar. O que ia acontecer?

– É verdade que você vai ser empregada doméstica quando crescer, Lil Kelvey? – perguntou Lena com uma voz estridente.

Silêncio profundo. Em vez de responder, Lil apenas deu um sorriso abobalhado, envergonhado. Ela fingia não ter ouvido a pergunta. Que decepção para Lena! As outras meninas caíram na gargalhada.

Lena não podia aguentar aquela caçoada. Pôs as mãos nas cadeiras e exclamou arrogante, dando despeitadamente de ombros:

– Ahn, também o pai de vocês está na prisão.

Era tão formidável ter dito aquilo, que todas as meninas saíram correndo juntas, profunda, profundamente contentes, numa alegria selvagem. Uma delas encontrou uma corda comprida, e elas começaram a pular. Nunca pularam tão alto, entraram e saíram da corda tão depressa, nem fizeram coisas tão arrojadas como naquela manhã. A tarde, Pat veio buscar as Burnells com a charrete, e foram para casa. Tinham visitas, Isabel e Lottie, que adoravam visitas, subiram para trocar os aventais. Mas Kezia escapuliu para os fundos. Não havia ninguém por perto. Ela começou a balançar-se no portão branco do quintal. Pouco depois, olhando para a estrada, viu dois pequenos pontos. Eles foram crescendo, vinham em direção a ela. Agora podia ver que um estava na frente e o outro logo atrás. Agora podia ver que eram as Kelveys. Kezia parou de balançar. Pulou do portão e quase saiu correndo. E, então, hesitou. As Kelveys se aproximavam e, ao lado delas, caminhavam as suas sombras, compridíssimas, estendendo-se através da estrada, as cabeças nos ranúnculos.

Kezia tornou a trepar no portão. Tomou uma decisão. Balançou para fora.

– Oi! – fez para as Kelveys que passavam.

Elas ficaram tão atônitas, que até pararam. Lil deu o seu sorriso ababalhado. Nossa Elsa ficou olhando.

– Podem vir ver a nossa casa de boneca, se quiserem – disse Kezia, esfregando o dedo do pé no chão.

Lil corou e sacudiu vivamente a cabeça.

– Por quê não? – perguntou Kezia.

Lil respirou fundo, nervosamente.

- Sua mãe disse pra minha que era pra você não falar com a gente.

– Ahh – fez Kezia, sem saber o que replicar. – Não tem importância. Podem espiar, assim mesmo, a nossa casa de boneca. Venham. Não tem ninguém olhando.

Lil sacudiu a cabeça com maior veemência ainda.

– Vocês não querem? – perguntou Kezia.

De repente, deram um puxão na saia de Lil. Ela virou-se para trás. Nossa Else implorava com os olhos enormes, fazia cara feia – queria ver. Por um momento, Lil fitou a irmã com uma expressão de dúvida. Mas nossa Else puxou de novo a saia dela. Lil deu um passo adiante.

Kezia foi na frente. Feito dois gatos de rua, as duas a seguiram pelo quintal até onde estava a casa de boneca.

– Olhem! – mostrou Kezia.

Houve uma pausa. Lil respirava profundamente, quase bufando. Nossa Else estava silenciosa como uma pedra.

– Vou abrir pra vocês – disse Kezia gentilmente.

Abriu o trinco, e as meninas viram o interior da casa.

– Tem uma sala de visitas e uma sala de jantar. E isto é o...

– Kezia!

Ah, que pulo elas deram!

– Kezia!

Era a voz da tia Beryl. Elas se viraram. Da porta dos fundos, tia Beryl olhava como se não pudesse acreditar no que estava vendo.

– Você ousou convidar as Kelveys para virem até o quintal?! – exclamou a voz fria e furiosa. – Você sabe, tão bem quanto eu, que está proibida de falar com elas! Vão embora, meninas, vão já embora! E não voltem mais!

Tia Beryl foi até o quintal e enxotou-as, como se enxotasse galinhas.

– Fora, fora, imediatamente! – gritou, fria e arrogante.

Não foi preciso dizer-lhes aquilo duas vezes.

Ardendo de vergonha, apertando-se uma à outra, Lil arrastava a irmã, nossa aturdida Else, como se fosse sua mãe, atravessaram sem saber de que jeito o grande quintal e passaram comprimidas pelo portão branco.

– Menina travessa, desobediente! – tia Beryl disse a Kezia, azeda, e bateu violentamente a porta da casa de boneca.

A tarde havia sido terrível. Recebera uma carta de Willie Brent, uma carta tremenda, ameaçadora, dizendo que se ela não viesse encontrá-la naquela noite em Pulman’s Bush, ele viria até o portão e perguntaria por quê! Mas agora, que ela assustara aqueles ratinhos das Kelveys e dera uma boa bronca em Kezia, seu coração estava mais leve. Aquela pressão horrível cessara.

Retornou à casa cantarolando.

Quando as Kelveys ficaram bem longe da vista dos Burnells, sentaram-se para descansar um pouco numa grande manilha vermelha à beira da estrada. As bochechas de Lil ainda estavam ardendo. Ela tirou o chapéu com a pena e colocou-o sobre os joelhos. As duas olharam sonhadoras, por cima do campo de feno, além do remanso do ribeirão, para a cerca de madeira do curral, onde as vacas dos Logans esperavam para serem ordenhadas. Em que as Kelveys estariam pensando?

Agora, nossa Else apertou-se mais à irmã. Já tinha se esquecido daquela mulher furiosa. Estendeu um dedinho, afagou a pena do chapéu e sorriu o seu sorriso raro.

- Eu vi o lampiãozinho – disse ela mansamente.

Daí, ambas tornaram a ficar em silêncio.

 

Tradução de Edla Van Steen e Eduardo Brandão

 
 


Muito bonita a mensagem do conto A casa de bonecas, da Katherine Mansfield. Muito inteligente dela criar uma estória de malediscências entre meninas ainda tão pequenas, buscando chamar a atenção dos adultos para os filhos que “constroem”, e que sensível perceber como o olhar voltado para um detalhe tão simples pode modificar todo o rumo do conto, o rumo da própria vida.

As arbitrariedades criadas pelos adultos que podem corromper a inocência das crianças; o preconceito ridículo que é passado como uma herança (e que péssima herança) para meninas que começam a conhecer a vida são momentos fortes do conto que nos fazem pensar, desabafar e colidir com nossa própria sociedade e seus “valores”.