quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Trapiá. de Caio Porfírio Carneiro

Pesquisas na net sobre esse assunto teve bons resultados. A conferir:

Trapiá, de Caio Porfírio Carneiro




Com tipos, painéis e valores bem distintos, os contos de Caio Porfírio de Castro Carneiro espelham sua vivência na fazenda Pau Caído, interior do Ceará; em Fortaleza, cidade em que o escritor nasceu e completou sua formação; e finalmente em São Paulo, para onde se mudou em 1955.



Este rico universo de personagens regionais típicas está descrito com sutileza em Trapiá, seu livro de estréia, publicado em 1961. Um dos traços marcantes desta obra é a intertextualidade, já que a história inicia-se com o trapiá - uma árvore que logo após iria se tornar um município, onde o livro gira ao seu redor. As histórias se desenrolam, portanto, nessa pequena cidade e em seus arredores. Não há um conto intitulado “Trapiá”.



A leitura apressada do livro pode dar equivocada impressão de que se trata de contos regionais no sentido menor, pelo fato de que a matéria narrativa estaria presa a um contexto cultural específico que se propõe a retratar e de onde vai haurir a sua substância. São histórias da terra áspera, calcinada, coronéis, arrieiros, velhos solitários, gente humilde do interior, meninos com a infância sofrida. Os personagens circulam pela caatinga, pelo mata-pasto, pelo roçado. Do campo para a cidade pequena é um passo. A vida rural é retratada nesses contos com fidelidade.



As primeiras narrativas curtas de Caio têm como palco o sertão, o campo, os vilarejos, as pequenas cidades. A impressão de que os contos de Trapiá são regionais afigura-se como tal dado que a matéria narrativa incorpora ainda no texto termos e expressões típicas como “potoca’, “de vera”, “tapuru de gente’, “mucuim do inferno”, “embiocado”, “cumaru”, “canarana”, “mofumbó”, “varejão”, “pega-pinto”, ton-fraco de capote”, “neu”, “desbilotada” “maluvido”, “manga”, “baticun’, “capionga”, “cansansão”, “mode”, “cachimbeira”, “gasguito” e “pitombeira”. Embora não ocorra o abuso do uso desses termos e expressões típicas na narrativa concisa, não se repetem em cada história quando incorporados ao discurso coeso. Isso já demonstra uma tomada de consciência crítica do contista para evitar a presença do repetitivo, enfadonho, que em geral ocorre no texto de natureza regionalista.



Não importa ao contista de Trapiá a transposição da linguagem para o campo literário tal qual ela é. Nem importa retratar a ambiência onde se passa a história como se fosse fotografá-la nos mínimos detalhes. Passa longe o dado sociológico transformado em matéria literária, realidade estética, visando prevalecer o documento sobre o subjetivo. Embora enraizado em sua região de origem, fazendo dela muitas vezes a matéria-prima de sua criação literária, Caio Porfírio Carneiro nos contos de Trapiá ultrapassa os limites do regionalismo dos anos 30/40, para engajar-se em uma literatura que tem como tema o ser humano tocado de suas verdades essenciais: tristezas e dores.



A economia dos meios nos contos de Trapiá salta aos olhos como uma maneira bem particular da expressão, a se mostrar com precisão na arte implícita de forjar a história no que pretende contar. Há uma nota especial disso desde a fala dos personagens, passando pela ação que os movimenta através de sua psicologia, até as observaçõese e constatações que fazem dando uma idéia do lugar onde acontece a intriga. Tanto no fundo como na forma há sempre o uso dos meios de expressão com síntese, equilíbrio, intensidade do verbo, “vazios narrativos”, tudo isso manipulado com facilidade que torna o narrador possuidor de uma dicção muito própria no corpo do moderno conto brasileiro.



Para não cair no tempo lógico seqüenciado da narrativa, o contista recorre ao contraponto, fazendo que os quadros vividos pelos personagens exibam a história com um interesse eficaz capaz de prender o leitor do princípio ao fim. Preenche-se de interesse o drama na medida em que os personagens agem. O recurso da síntese manipulado pelo contista consegue no final imprevisível o efeito intenso.



No conto “Milho Empendoado”, por exemplo, o coronel revela à mulher apenas no desfecho que não pegou o ladrão, mas acabou com o roubo, quando mandou o suspeito vigiar as galinhas.



Em “O Pato do Lilico”, o pai não acredita que o menino tenha recebido o brinquedo de presente do homem na cidade. Em sua rusticidade estúpida, pensa revoltado que o menino havia roubado o brinquedo. De nada adiantava o choro e a insistência do filho querendo mostrar a inocência. No final, bruscamente, jogou o pato no chão e pisou com raiva, enquanto a mulher lá da cozinha dizia para o filho se calar, não fazer isso outra vez, Nosso Senhor castiga. Neste conto também se vê a paisagem sertaneja, quer no campo propriamente dito, quer no interior das casas, bem como os costumes (cavalo de talo de carnaúba), os objetos (bilros de almofada, cabresto, cangalha, grajaú), a linguagem (bichinho, socar-se, rachar de peia).



Em “O Gavião”, a raiva que o menino tem da ave que lhe roubou o canário de estimação, insistindo para que o pai a matasse, transforma-se em admiração quando entra em contato direto com ela, percebendo sua maneira de reinar na natureza com coragem e beleza. Comove o final quando a ave é abatida pelo pai e o menino sente.



Em “Candeias”, o vadio menino Rafael implica a todo instante com a Velha Candoca, mandando os companheiros sujar os panos do coradouro, chamando-a de “velha cachimbeira”. Quando retiraram do açude o menino morto, “na certa estaria deformado, inchado, sem o sorriso moleque”, a velha sente água nos olhos. Nunca ouviria mais a provocação: Velha cachimbeira!



Em “Macambira”, o velho Firmo com o olhar perdido no poente, conversa em silêncio ao perscrutar o tempo, o vento e sua poeira. Vê a criação se esvaindo sem a ração, e ele resistindo à seca, à solidão, não atendendo ao pedido dos filhos em São Paulo para deixar suas terras, porque um homem não se dobra ao vazio de tudo, nem quando perde a mulher.



Em “Come gato” o contista entrança duas histórias aparentemente díspares: a disputa política entre coronéis e a humilhação diária do pobre Olavo, apelidado pela meninada de Come Gato – para pintar um quadro de agudo realismo. Nestes contos os diálogos se alongam, entrecortados por breves narrações.



Assim, no eixo desses contos vê-se a solidariedade inesperada latejar sentimentos e nervos em “Mata-Pasto”,“Come Gato”; o absurdo da incompreensão em “O Pato do Lilico”; a astúcia do coronel em “Milho Empendoado”; a afeição intensa da Velha Candoca em “Candeias” e o ódio revertido em amor pela ave de rapina em “O Gavião”.



Nas histórias de Trapiá, a conservar alguns elementos clássicos do realismo, com observações exatas nas cenas sobre seres e objetos da realidade imediata, a estrutura tradicional da narrativa curta fragmenta-se no lugar de ser desmembrada linearmente. A ação dos personagens que, em pequenos blocos cruzam e se entrecruzam no desenvolvimento da trama, retiram qualquer possibilidade de onisciência narrativa, da qual aflora o drama sem desprezar a ternura.



O estilo enxuto e sintético de Caio Porfírio Carneiro projeta densidade humana forçando o leitor participar da história, tornar-se cúmplice do destino dos personagens com sua feição sofrida. A intensidade que emerge do discurso feito com observações lúcidas sustenta certa atmosfera que evolui em seus ângulos críticos na medida em que a história caminha para o desfecho imprevisível. O epílogo força qualquer um pensar sobre a complexidade do mistério da existência.



Nestes contos não se vê a intenção do escritor em fixar tipos, linguagem, valores e costumes de determinada região, transpondo os elementos para o literário em seu espaço documental típico. O contista não experimenta a linguagem, embora se mostre íntimo do território humano que projeta, pouco a pouco, no texto enxuto. Não chega a forçar em algum momento as emoções do seu fundo a sustentar o drama. A cumplicidade que emerge do leitor em torno de alguns dos personagens decorre da capacidade que tem Caio Porfírio Carneiro de alcançar sentimentos verdadeiros, que são de nós humanos, com nossas permanentes comoções. A matéria desses contos não é outra senão a criatura humana nos incidentes, encontros e desencontros da existência.



Fonte: Cyro de Matos, contista, poeta, cronista, ensaísta e autor de livros infanto-juvenis.

Fonte: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/t/trapia



Mais sobre autor e obra comentada:

Fonte: http://litebrasil.blogspot.com/2008/12/trapi-de-caio-porfrio-carneiro.html





QUINTA-FEIRA, 18 DE DEZEMBRO DE 2008

Trapiá, de Caio Porfírio Carneiro

TRAPIÁ (de origem tupy tarapi’á)s.f. catauari, catauré – Árvore pequena da família das caparidácias, de propriedades medicinais, cujas folhas têm pérolas lanceoladas e cujo fruto é uma baga globosa com sementes de testa dura e lenhosa. (Em Pedra Branca-Ce, há um açude com esse nome e em Pernambuco há uma cidade com o nome Vila Trapiá)



O AUTOR:

Caio Porfírio Carneiro nasceu em Fortaleza-Ce, a 07 de junho de 1928, onde trabalhou como jornalista e bacharelou-se em Geografia e História pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza. Ao lado de Moreira Campos, Eduardo Campos e Fran Martins, expoentes do Grupo Clã, Caio Porfírio é um dos mais fecundos cultores do conto no Ceará, como assinala Nilto Maciel. Mudou-se para São Paulo em 1955, onde trabalhou, inicialmente, na imobiliária de um irmão e foi redator de programas da Rádio Piratininga. Durante anos, trabalhou na Editora Clube do Livro Ltda. Em 1963, assumiu a função de secretário administrativo da União Brasileira de Escritores de São Paulo (UBESP). Sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, do PEN CLUBE-SP, da Academia Paulistana da História, da Academia de Letras do Brasil (Brasília), da Unión Cultural Americana (Buenos Aires) e sócio correspondente da Academia Cearense de Letras. É colaborador de vários suplementos do País, com ficção e crítica literária. Assinou a apresentação de dezenas de obras, dos mais diversos gêneros Alguns dos seus livros alcançaram várias edições. O romance O Sal da Terra foi traduzido para o italiano e o árabe e adaptado em roteiro técnico para o cinema. Contos seus estão incluídos em duas dezenas de antologias. Embora seja também romancista, poeta, novelista e crítico literário, foi no conto que ele se afirmou o como um dos mais importantes representantes do gênero na literatura brasileira contemporânea. Está vivo e em plena atividade.



Suas obras se caracterizam pela síntese, pela sutileza e pela sobriedade da linguagem. Caio Porfírio exercitou vários gêneros literários, transitando pelo regional, pelo urbano, e pelo enigmático. Na forma dos contos, vai rompendo, nas obras seguintes, a estrutura tradicional vista em Trapiá e ousando com enredos não-lineares, fragmentados; intercalação de foco narrativo e outros procedimentos de vanguarda, como, inclusive, a incorporação de técnicas de outros textos, como os do teatro e das orações religiosas.



Contos:

Trapiá (1961);

Os Meninos e o Agreste (1969);

O Casarão (1975),

Chuva - Os Dez Cavaleiros (1977),

O Contra-Espelho (1981)

Dez contos escolhidos (1983)

Viagem sem Volta (1985),

Os Dedos e os Dados (1989),

A Partida e a Chegada (contos e narrativas)(1995)

Maiores e Menores (2003)

Romances:

O Sal da Terra (1965)

Uma Luz no Sertão (romance-reportagem) (1973/2007)

Novelas

Bala de Rifle (novela policial)(1965),

Três Caminhos (1988)

Dias sem Sol (1988)

A Oportunidade (1986).

Ensaios:

Do Cantochão à Bossa Nova (ensaio sobre música popular brasileira)

A vocação nacional da UBE – 62 anos (Histórico da UBE desde a sua fundação) (2004)

Literatura juvenil:

Profissão: esperança (1986)

Quando o Sertão Virou Mar...,(1986)

Da Terra Para o Mar, do Mar Para a Terra (1987)

Cajueiro Sem Sombra (1997)

Poesia

Rastro Impreciso (1988)

Reminiscências (memorialismo)

Primeira Peregrinação (1994)

Contagem progressiva (1988)

Mesa de Bar (1997)

Perfis de Memoráveis (autores brasileiros que não alcançaram o 3º milênio) (2002)

Miscelênea (literária)

Gramíneas (2006)



O Estilo do autor: Quase todos os livros de contos de Caio apresentam características de romance. Em Trapiá, , por exemplo, todas as histórias têm como cenário a pequena cidade de Trapiá e os vilarejos e sítios bem próximos, personagens reaparecem, revezando-se a cada conto, dando a impressão de que todos se conhecem. Nesse, como em outros livros seus,.os enredos são construídos com uma linguagem sintética e precisa; os personagens têm voz e certa densidade, pois observam, constatam, agem e, muitas vezes surpreendem. Cyro de Matos observa que o estilo enxuto e sintético de Caio Porfírio Carneiro projeta densidade humana, forçando o leitor participar da história, tornar-se cúmplice do destino dos personagens com sua feição sofrida. A intensidade que emerge do discurso feito com observações lúcidas sustenta certa atmosfera que evolui em seus ângulos críticos na medida em que a história caminha para o desfecho imprevisível. O epílogo força qualquer um a pensar sobre a complexidade do mistério da existência”. De fato, o narrador, sempre em 3ª pessoa nos contos de Trapiá, contam acontecimentos da vida seres sofridos, mas esperançosos, valentes, resistentes aos sofrimentos das secas ou das enchentes, das humilhações ou da solidão, da pobreza material, das perdas.

Ainda de acordo com Matos, “nestes contos não se vê a intenção do escritor em fixar tipos, linguagem, valores e costumes de determinada região, transpondo os elementos para o literário em seu espaço documental típico. O contista não experimenta a linguagem, embora se mostre íntimo do território humano que projeta, pouco a pouco, no texto enxuto. Não chega a forçar em algum momento as emoções para sustentar o drama. A cumplicidade que emerge do leitor em torno de alguns dos personagens decorre da capacidade que tem Caio Porfírio Carneiro de alcançar sentimentos verdadeiros, que são de nós humanos, com nossas permanentes comoções. A matéria desses contos não é outra senão a criatura humana nos incidentes, encontros e desencontros da existência”. Embora apareçam os coronéis, os barqueiros, o pai ignorante e honesto, o empregado matreiro, não há estereótipos marcados. Também não falta a dimensão humana desses seres de papel que vivem sem muita escolha. Com estilo próprio, Porfírio recorta ‘momentos’ para desenvolver suas histórias e, muitas vezes, dá ao leitor a chance de terminá-las com sua imaginação. Os diálogos são enxutos, bem contextualidados, sempre fiéis ao nível de linguagem dos personagens.



A OBRA:



TRAPIÁ é o primeiro livro de Caio Porfírio Carneiro, cearense de Fortaleza (07/06/1928), radicado em São Paulo desde 1955. É uma coletânea composta por 11 contos, todos regionalistas. O primeiro texto – “Como nasceu Trapiá” – não é um conto, mas uma explicação sobre o surgimento da cidade que será cenário das narrativas, todas histórias da “terra áspera, calcinada, de coronéis, arrieiros, velhos solitários, gente humilde do interior, meninos com a infância sofrida”(Matos).

Tempo: Não há tempo psicológico em nenhuma narrativa, embora, em muitos contos não percebamos o tempo cronológico seqüenciando a narrativa. É Matos quem diz que isso decorre da técnica do contraponto. O narrador não descuida do leitor e expõe os fatos de modo que ele não se desinteresse pelas histórias relatadas, sempre mantendo os personagens em ação, mesmo dentro do drama que vivem. Em “Come gato”, um dos contos mais longos, com partes numeradas, como a dividir as cenas, percebe-se a simultaneidade das situações.



Espaço:. O espaço da maioria dos contos é a cidade de Trapiá e seus arredores, que aparecem como cenário ou apenas nas referências dos personagens: Taimbé, Coité, Pitombeira, Serra do Machado, Brejo da Ema, Canta Galo, Fazendas Queimadas, Cerrado e Contendas, todos lugares imaginários, situados no sertão, na caatinga, todos terra calcinada. Ao narrador parece não importar muito retratar as paisagens e os ambientes, pois as descrições são mínimas. A repetida referência ao vento Aracati remete imediatamente o leitor atento ao Ceará. Aliás, a presença do vento é uma constante nos contos de Trapiá. O último do volume, como a confirmar, é intitulado justamente “Ventania”.



Estilo de época: Pós-modernismo - Na arte, os anos 60 marcam o momento da transição da vanguarda para a contemporaneidade. O atestado de óbito da Modernidade. Os procedimentos da arte passam dos polêmicos questionamentos dos suportes tradicionais ao fim do suporte como elemento essencial da obra de arte. É o momento da arte conceitual que vai dominar na década seguinte. Uma arte mais fria, cerebral, menos engajada, voltada para interrogar sua própria natureza. Uma manifestação que aconteceu em vários Países , quase ao mesmo tempo, inclusive no Brasil. Os artistas plásticos abandonam os museus, as galerias, saem da solidão dos ateliês e se misturam na multidão. É a poética do gesto, da ação, da coletividade, a utopia da arte / vida como participação do espectador na realização da obra de arte. No Brasil a Tropicália, de Hélio Oiticica, foi uma das manifestações mais polêmicas, ao lado de Terra em Transe filme experimental barroco de Glauber Rocha e a

Peça O Rei da Vela, de Osvald de Andrade, dirigida por José Celso Martinez.



É a década dos Happenings, surgidos com a Pop arte, uma espécie de teatro instantâneo, uma mistura de artes visuais, música e dança, que convida o espectador a participar da obra ou da ação, uma forma de tirá-lo da passividade, fazendo-o reagir à provocação do artista e do cotidiano político social. Para Jean Jacques Lebel, autor de vários happenings em Paris: “Nosso primeiro objetivo é transformar em poesia a linguagem que a sociedade de regionalista que surgiram no Romantismo; a narrativa fantástica, que se configurou como gênero também no séc. XIX, o ultra-realismo, que nada mais é, do que o velho Naturalismo; as crônicas memorialistas que já existiam, mas não eram consideradas

literárias alcançaram esse status; as narrativas políticas e intimistas iniciadas no Modernismo intensificaram-se e, com a legitimação da pluralidade e a ficcionalização de variados gêneros, surgiu o romance-reportagem, trazendo a linguagem do jornalismo para a literatura num diálogo promissor.



Caio Porfírio não se restringiu a nenhuma tendência específica: exercitou o conto regionalista e o urbano, o romance-reportagem, a poesia, a novela, a crônica memorialista, enfim, diversos gêneros e tendências, com estilo próprio, sem ater-se a experimentalismos radicais ou reverenciar ‘revoltas artísticas’, embora, em suas obras seguinte à Trapiá, tenha utilizado técnicas diversas, inclusive de vanguardas.



Contexto histórico: Trapiá surge no ano em que os soviéticos enviam Iuri Gagárin ao espaço. Independente desse marco, a década de 60 é marcada pela revolução comportamental, com o surgimento do feminismo e dos movimentos civis em favor dos negros e homossexuais. O Papa João XXIII abre o Concílio Vaticano II e revoluciona a Igreja Católica. Surgem movimentos de comportamento como os hippies, com seus protestos contrários à Guerra Fria, à Guerra do Vietnã e o racionalismo. Esse movimento foi também a chamado de contracultura. Ocorre Revolução Cubana na América Latina, levando Fidel Castro ao poder. Tem início também a descolonização da África e do Caribe, com a gradual independência das antigas colônias.



Foi um período marcado, pelo menos os 5 primeiros anos, por um sabor de inocência e até de lirismo nas manifestações sócio-culturais, e no âmbito da política é evidente o idealismo e o entusiasmo no espírito de luta do povo. Foi inaugurada Brasília, a nova capital do país, por Juscelino Kubitschek. Jânio Quadros sucede Juscelino e renuncia cerca de sete meses depois, sendo substituído pelo então vice-presidente João Goulart. De 1966 a 1968 (porque 1969 já apresenta o estado de espírito que definiria os anos 70), as coisas mudam: experiências com drogas, perda da inocência, revolução sexual e protestos juvenis contra a ameaça de endurecimento dos governos. Sob o pretexto das tendências comunistas de Jango, ocorre o golpe militar de 1964, que depõe Goulart e institui uma ditadura militar. No final da década, tem início o período conhecido como "milagre econômico". Em 1969, integrantes da ALN e do MR-8 seqüestram o embaixador norte-americano Charles Elbrick, exigindo como resgate a libertação de 15 prisioneiros políticos. Após isso, diplomatas da Alemanha e do Japão também são seqüestrados no Brasil.



Na verdade, a segunda metade dos anos 50 já prenunciava os anos 60: a literatura beat de Jack Kerouac, o rock de garagem à margem dos grandes astros do rock (e que resultaria na surf music) e os movimentos de cinema e de teatro de vanguarda, inclusive no Brasil. A década de 1960 é marcada pela velocidade das vanguardas artísticas, que têm Nova Yorque como capital cultural do século XX. Dentre as manifestações artísticas como Minimalismo, Op Arte, Arte cinética, Novo Realismo e Tropicália, a Pop Arte surgida na Inglaterra, mas apropriada e difundida pelos norte americanos foi a vanguarda mais decisiva da década. Sem programa preestabelecido, sem manifesto, utilizando-se do repertório do cotidiano do consumo e da cultura de massa, foi rapidamente transformada em tendência internacional. Isso mostrou o poder cultural dos americanos.



No Brasil estudantes em passeata enfrentam a repressão militar; em abril de 1968, a polícia mata o estudante secundarista Edson Luiz no Rio de Jane iro e em dezembro o golpe mortal do governo militar, o Ato Institucional Nº.5. O auge da repressão. Ninguém mais se sentia seguro. A arte foi proibida na rua, exposições fechadas, como a Bienal Nacional em Salvador e artistas presos ou vivendo na clandestinidade ou no exílio. Fecharam-se as cortinas e o espetáculo passou a ser encenado na obscuridade. Até hoje a arte brasileira vive o prejuízo desses anos de sansão e petrificação da cultura brasileira



Personagens: Coronéis, arrieiros, viúvas, velhos solitários, mulheres que engravidam todos os anos, crianças, sobretudo meninos, com a infância maçada pela pobreza e pelo sofrimento; a maior parte, gente humilde do interior, que trabalha na terra áspera, em comboios, canoas.



Foco narrativo: Todos os contos são narrados na 3ª pessoa verbal; têm, portanto, os fatos relatados por um narrador observador, que não tem total domínio dos acontecimentos. Note-se que, o tempo todo, intercalam-se os discursos diretos e indiretos, o que faz com que a ação dos personagens tenham bastante importância no desenvolvimento da trama, retirando ar possibilidade de onisciência narrativa.



Características da obra Trapiá:

Regionalismo: Nota-se, nos contos de Trapiá, um retorno de Porfírio à sua região nordestina que, nesta obra, é, certamente, fonte de inspiração para suas histórias. Ele, entretanto, ultrapassa essa dimensão do tão-somente regional e atinge o universal ao enredar suas verdades, tristezas e dores, da mesma forma que fez Guimarães Rosa. Algumas expressões típicas: “casa do sem jeito”, “potoca’, “de vera”, “tapuru de gente’, “mucuim do inferno”, “embiocado”,“canarana”, “mofumbó”, “varejão”, ton-fraco de capote”, “neu”, “desbilotada” “maluvido”, “manga”(no sentido de pasto), “baticun”, “capionga”, “mode”, “cachimbeira”, “gasguito” “bichinho”, “socar-se”, “rachar de peia”, “oitão”.

O uso da linguagem coloquial: recurso que dá verossimilhança à fala dos personagens e marca a simplicidade deles: tou, tar (estou, está); té logo, neu (em eu/em mim); Inhor sim (sim, senhor); desafasta, tu não anda; vosmecê; queu (que eu); cê, pegou ele; eu é Olavo. Como a coadunar perfeitamente forma e conteúdo, além da paisagem sertaneja e histórias de sua gente, os contos resgatam não apenas a fala coloquial e as expressões típicas, mas reproduz imagens através do léxico que nomeia objetos (bilros de almofada, cabresto, cangalha, grajaú), costumes (cavalo de talo de carnaúba, lava pés antes de deitar) e vegetação (cumaru, mata-pasto, pitombeira, oiticica, pega-pinto, cansansão, gerimataia), como num painel da cultura local.

Sutileza e sobriedade de linguagem - A utilização de termos e expressões típicas da região retratada na obra ocorre de maneira comedida; pois aparecem incorporados ao discurso dos personagens, bem contextualizados, não incorrendo, por isso, o contista, em exageros que tornem os textos cansativos.

Síntese – Conciso em suas colocações e econômico com as palavras, Porfírio mostra, já no primeiro livro, conhecimentos da técnica narrativa. Ele arma as histórias, como se armasse um bote e, ao enredar o leitor na fala dos personagens, nos movimentos e constatações deles, surpreende-o com finais inesperados, seja pela trivialidade ou pelo inusitado que causa surpresa ao leitor (então o coronel sabia de tudo em, “Milho empendoado”?). Essa sua capacidade de síntese e equilíbrio não tira a intensidade de seu discurso, nem deixa lacunas desnecessárias entre o leitor e a história que lê.



Intertextualidade homo-autoral: os contos dialogam um com o outro. Como se passam, todos, basicamente, na mesma localização – entre a cidade de Trapiá e circum-vizinhanças - os personagens se repetem, transitam em uma e outra história, como se compusesse, cada unidade,.o núcleo de um enredo maior. Como vivem na mesma região, os personagens se conhecem, transitam pelos mesmos espaços e, embora vivam histórias autônomas (para entender um conto não se precisa ter lido outro) têm-se a impressão de estar diante de um quase-romance, dada a unidade na diversidade de casos.

Vejamos alguns exemplos: no conto “O canoeiro”, quando ele narra o crime cometido pelo Pereira, no enredo de “A dívida”, confirmando, inclusive, os defeitos do Queiroz. É como se a ação dos dois contos fossem simultâneas. Já “Milho empendoado”, o Coronel Camilo fala sobre a visita que fará ao amigo Firmo, que perdeu a esposa Dona Amélia; na narrativa de “Macambira”, encontramos esse mesmo Seu Firmo, resistindo à seca, conservando seu patrimônio e vivendo sua solidão de viúvo; falando sobre a resistência à seca, um dos personagens faz menção ao Cel. Camilo e sua fazenda. O Coronel Aparício que manda o cabra Tacanha agredir Seu Leocádio em “Come Gato” é o mesmo do conto “Padrinho”, que nega ajuda ao empregado para socorrer a criança no meio da noite. Em “Ventania”, o velho Aristides dá notícia da morte do Lino da Serrrota ao amigo Sabino, o mesmo Cel. Lino que é levado na canoa por Chico, no conto “Canoeiro”.



TEMAS: solidariedade (“Mata-Pasto”,“Come Gato”); ignorância (“O Pato do Lilico”); astúcia e prepotência dos coronéis (“Milho Empendoado” e “O padrinho); a afeição (Velha Candoca em “Candeias”); solidão na velhice (“Ventania”) e ódio revertido em amor (“O Gavião”). A morte é uma constante, nos contos, por doença, afogamento, assassinato, mordida de cobra, mostrando a precariedade do homem diante da sua maior certeza. O tema é, na verdade, o ser humano em sua capacidade de amar e desamar, em sua solidão, sua dor, sua humildade e seu orgulho, num calidoscópio de sensações e sentimentos que compõe a diversidade humana.



ENREDOS - Nas onze histórias de Trapiá, de acordo com Matos, percebem-se nuanças clássicas do “realismo, com observações exatas nas cenas sobre seres e objetos da realidade imediata, a estrutura tradicional da narrativa curta fragmenta-se no lugar de ser desmembrada linearmente. A ação dos personagens que, em pequenos blocos cruzam e se entrecruzam no desenvolvimento da trama, retiram qualquer possibilidade de onisciência narrativa, da qual aflora o drama sem desprezar a ternura. O recurso da síntese manipulado pelo contista consegue no final imprevisível o efeito intenso”

• Como nasceu Trapiá – Texto de abertura, escrito pelo próprio autor, contando a origem do vilarejo de Trapiá, antigamente apenas um descampado, com uma oiticica e um trapiá plantados, exatamente onde cruzavam os caminhos da “Vila Coité ao Serrote do Machado e da Fazenda Taimbé no rumo dos cafundós do sertão”. Retirantes da seca do Pernambuco, da seca de 77 construiram casebres nessa caatinga, onde foi morte e dependurado na oiticica o cangaceiro Nestor Amarício.



Milho empendoado – Chico, empregado da casa do coronel Camilo, sem recursos para alimentar a mulher ‘de cria’ rouba galinhas do quintal do patrão para que a sogra faça as canjas de que ela necessita. A velha Rita, no diário ritual de jogar milho para as aves, reclama do marido, citando os inusitados nomes das sumiram (Pedrés, Capão, Indiano), dando pela falta de mais uma. O velho, entretanto, entretido com os problemas das terras, faz ouvido de mercador, até o dia em que designa Chico para cuidar do sumiço das galinhas, tendo a sutileza de desviar as desconfianças para o vizinho, Doroteu. No final, entretanto, surpreende o leitor ao revelar à mulher que “não pegou o ladrão, mas acabou com o roubo, quando mandou o suspeito vigiar suas aves”.



O pato de Lilico – Em um dos raros passeios à cidade, o menino Lilicoo se desliga do pai, enquanto ele faz a entrega da carga que fora levar, e vai à praça admirar as crianças que estão a brincar. Açoitado por elas, é socorrido por um rico senhor que, compadecido com dua humildade, leva-o a uma loja de brinquedos onde tem um boneco de Papai Noel, e o presenteia com um pato de brinquedo. Quando o menino retorna, o pai não acredita que o ele tenha recebido o brinquedo de presente e, em sua ignorância e estupidez, pensa revoltado que o menino havia roubado o objeto e toma-o do filho, que faz o longo trajeto até a sua casa o tempo todo chorando. A criança não consegue mostrar sua inocência, pois o pai não quer ouvi-lo. Já em casa, quer puni-lo com uma surra, mas a mãe o impede.Ele quebra o brinquedo e pisa com raiva, enquanto a mulher na cozinha diz para o filho se calar, e recomenda-o nunca mais repetir o erro, pois “Nosso Senhor o castigará”.



O Gavião – Um menino se revolta, porque um gavião rouba e devora seu canário de estimação, e insiste para que o pai o mate. Depois de várias tentativas frustradas, o menino passa a descobrir a astúcia e a beleza da ave e a admirá-la. Deseja, então, possuir uma, também para provar aos amigos sua coragem. Um dia, o pai mata a ave e o chama para vê-la abatida e, enfim, vingar a morte do canário. O menino fica imensamente ressentido, pois o seu ódio já havia se transformado em amor.



A dívida – Pereira, após brigar com Queiroz na feira da cidade e feri-lo com uma faca, foge com a mão ferida e procura abrigo na casa do amigo Gerardo, que fica fora da cidade. Gerardo o recebe surpreso, as vê-lo esfarrapado e sangrando, esbaforido da correria, ouve o seu relato e fica sabendo que o amigo, ao cobrar uma dívida do Queiroz que há meses lhe comprou uns bezerros, é agredido, xingado e reage tomando a faca do devedor e derrubando-o. Certo de que matou o homem, Pereira se angustia e pede ajuda. Gerardo vai à cidade apurar os fatos e pedir ajuda ao ‘doutor Soares’, de quem o criminoso é eleitor. Enquanto isso, o Pereira fica imaginando para onde será ‘degredado’ pelo político e passa a sonhar em enriquecer na Serra do Machado e voltar triunfante à cidade natal, com todos à sua volta fazendo reverência. Ao retornar da cidade, Gerado o avisa de que o Queiroz foi apenas ferido e que o ‘doutor Soares já o advertiu de que deverá pagar a dívida. Pereira, já envolvido com o sonho de viver e enriquecer na Serra, demonstra decepção.

Come gato – O narrador traça duas histórias paralelas: a do menino Olavo, que vive a constante humilhação de ser chamado de “Come Gato”, quando passa pela rua, e a do Seu Leocádio, que vive as contendas políticas com seu adversário, o Cel. Aparício. Seu Leocádio é o único que trata o pobre Olavo, que mora num quartinho nos fundos de uma oficina, com respeito, chamando-o pelo nome, e oferecendo-o comida. Sabendo que Seu Leocádio foi agredido dentro de sua própria casa pelo Tacanha, capataz do Cel. Aparício, Olavo vai à sua procura e o mata com uma faca, dizendo que “”Em coronel Leocádio ninguém encosta a mão”. Impune em seu heroísmo anônimo, Olavo retorna à cidade e tudo volta ao normal: Seu Leocádio está na calçada, paparicado pelos correligionários e contando a ‘vingança’, os meninos correndo atrás dele e chamando-o de Come gato e, finalmente ele sendo recebido pelo velho, que o oferece comida com a delicadeza de sempre. A história, intercalada em 8 blocos narrativos, parece ilustrar ações simultâneas. Ao mostrar a solidariedade do menino sujo com o velho que lhe é generoso, ultrapassa-se o realismo do menino miserável para torná-lo herói, ainda que anônimo.



Mata-Pasto– Chico, empregado do Coronel Henrique, acostumado a capinar o mata-pasto e tirar as cobras, vive a maturar a idéia de um dia, à noite, entrar no quarto da velha Clotilde e furtar a lata que ela guarda cheia de dinheiro. “Dez anos trabalhando como burra sem mãe” e nada tinha. Um dia, aproveitando que o patrão deixara de cortar o pasto e podia se esconder, resolve agir: inventa para a mulher que vai visitar uma tia doente na cidade e fica de tocaia no meio do mata-pasto, acompanhando o movimento da casa, vê Cel Henrique chamar os netos para dormir, depois lavar os pés na bacia, derramar a água, escuta as ordens de Dona Clotildes para Lourdes e, enquanto calcula sua entrada na casa para roubar a lata com dinheiro e enterrá-la debaixo do pé de oiticica, sente uma picada no pé direito. Começa a delirar e desmaia, pois, na verdade, foi picado por uma cobra. Os outros empregados, de manhã cedo, encontram o corpo e levam-no para a casa do Coronel, que não entende o que Chico fazia ali naquela noite. Joana, a esposa, chega chorosa. Após alguns dias, por ironia do destino, Dona Clotilde manda um presente para a viúva: a lata com suas economias – trezentos mil réis – para ajudá-la a continuar a vida.



Macambira – O velho Firmo, viúvo de Dona Amélia, resiste à seca, tentando conservar seu patrimônio, sem ceder às ofertas de compra; recusa-se a ir morar com os filhos em São Paulo e vive com o olhar perdido no poente, conversando em silêncio, trocando o nome da empregada Raimunda pelo da esposa Falecida. Vive a examinar o tempo, do seu alpendre, falando com quem passa pela estrada e tomando conta do que é seu. Conserva seu gado com muitos gastos, e aprende a conviver com a solidão, alimentado pelas lembranças da casa cheia e esperando a chuva, suportando o casarão vazio e o vazio de sua vida, “porque um homem não se dobra... nem quando perde a mulher”



O padrinho – O miserável Chico, vendo a filha muito doente em uma rede, e a esposa grávida a pedir socorro e implorar-lhe para pedir ajuda ao patrão, vai, no meio da noite, bater na porta do Coronel Aparício. Aborrecido, o velho o atende e nega a ajuda, ordenando-lhe que deixe para quando o dia amanhecer. Compadecido com a situação da filha e da mulher, ele resiste à vontade de esperar o dia amanhecer e vai à cidade pedir um remédio ao farmacêutico, com quem já tem dívida. Após a cobrança, é atendido, mas, quando chega ao seu casebre, percebe a presença da vizinhança e fica sabendo que a filha morrera. Avisa ao patrão, padrinho da menina morta, esquecido da humilhação, mas ele mal escuta, apenas o dispensa do dia de trabalho. Dias depois, sua mulher dar luz à outra menina e ele, humildemente, volta ao Coronel Aparício para avisá-lo e convidá-lo, outra vez, para padrinho da criança.



Candeias – O afoito menino Rafael, em suas vadiagens pelo açude da cidade, acaba morrendo afogado e ficando preso nas raízes da Oiticica. Pedro e Zeca, numa canoa, com candeias na mão, tentam resgatar o corpo do menino, enquanto a mãe, o irmão e amigos, esperam o resultado da ação. Enquanto isso a Velha Candoca, com quem Rafael implicava mandando os companheiros sujar os panos do coradouro e chamando-a de “velha cachimbeira”, recorda a noite chuvosa em que o marido morreu afogado e sente dó do que aconteceu com o menino. Quando encontram o corpo menino morto, da sua calçada, acompanha o cortejo com o olhar, imaginando que “ na certa estaria deformado, inchado, sem o sorriso moleque”, e se comove, enchendo os olhos de lágrimas, pois nunca mais ouviria a provocação: Velha cachimbeira!



O canoeiro -Outro personagem com nome Chico, dessa vez um canoeiro, vive a atravessar o rio para levar pessoas e mercadorias à cidade de Trapiá. No período da cheia, os outros canoeiros se recolhem e ele, herdeiro da ‘valentia’ do pai, aproveita para trabalhar mais e juntar dinheiro para comprar uma canoa maior. Aumenta bastante o preço da travessia, cobrando pelo perigo que enfrenta. Ele se recusa a baixar o preço, inclusive para uma senhora que quer atravessar com o neto para ver a filha que está muito doente. Numa madrugada chuvosa, procuram-no em casa para atravessar o rio com o corpo de um coronel morto e sua viúva. Seriam duas viagens, pois teria que voltar para atravessar outros parentes que iam assistir ao enterro. Quando descobre que estão sem dinheiro, recusa o serviço, mas é convencido a fazê-lo para receber o dinheiro depois. Comovido, ela acaba dispensando o pagamento à viúva e diz que fez por caridade, embora ela continue a prometem que mandará o filho recompensá-lo. Após a cheia, as pessoas se recusam a fazer o transporte com ele, relembrando como ele subiu os preços na época em que só havia a canoa dele para fazer o trajeto. Sem clientes, gastando o dinheiro que economizara, ele se surpreende como uma visita: o filho do Seu Lino (o morto). Mesmo em situação difícil, ele recusa-se a receber o pagamento, pois já empenhara a palavra, mas aceita que ele compre a canoa grande com que tanto sonhava, para pagá-lo aos poucos. Causa admiração em todos da vila, faz o transporte de graça durante um dia, mas, no outro, volta à ativa com seu temperamento irredutível, cobrando caro pelo serviço. Outra vez encontra a mulher e o neto, de volta para atravessar o rio, e, ao saber que a filha dela morrera, nada lhe cobra. Orgulhoso em sua canoa nova, diz a ela que era amigo do Seu Lino e recebe os pêsames dela.



Ventania – O velho Aristides, apegado à sua fazenda Cerrado, continuava a briga anscestral pela posse da manga, mantendo, por isso, a velha rixa com o vizinho. Irritado com uma notícia que recebe do vaqueiro Nena, não comunicada ao leitor, ele chama o compadre Sabino e entrega-lhe o gado. Deitado na sua rede no alpendre do casarão, administrava sua fazenda e não cedia sua terra ‘para o que pediam’. Ruminava seu apego ao Juazeiro, olhando a ventania e dizia que abria mão de tudo, menos daquela árvore: “O meu juazeiro ninguém derruba”. Numa manhã, a velha Tereza o encontro morto em sua rede. Os coronéis de outras fazendas (personagens de outros contos) vão ao enterro e toda a gente dos arredores fica conversando sobre os feitos do velho. Dias depois, a velha Tereza, sem suportar a solidão no casarão, vende as terras ao vizinho e vai embora para a cidade. O Juazeiro é, então, derrubado para as obras da manga, e os dois empregados que fazem o serviço – Zé de Góis e Mundoca – comentando o capricho que o velho Aristides tinha com aquela árvore, cavam a terra e encontram uma lata enferrujada. São interrompidos pelo chefe do serviço e guarda-na para abrir depois. O leitor não conhece o conteúdo da lata, mas fica imaginar... e passa a saber que era a botija a razão do apego do velho à arvore.



BIBLIOGRAFIA:

CARNEIRO, Caio Porfírio. Trapiá, 4ª, edição, Ribeirão Gráfica e Editora, São Paulo, 2003.

GOMES, Celuta e AGUIAR, Thereza da Silva. Bibliografia do conto brasileiro, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1969.

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 1987.

MATTOS, Cyro de. Trapiá, de Caio Porfírio Carneiro In: Jornal da poesia

MACIEL, Nilto. “Os enigmas de Caio Porfírio Carneiro”.In:www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=2093 - 175k –

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.

Consulta ao site: pt.wikipedia.org/wiki/Anos_60 - 51k Acesso em 23/08/2008





OBRA: Trapiá, de Caio Porfírio Carneiro



TRAPIÁ (de origem tupy tarapi’á)s.f. catauari, catauré – Árvore pequena da família das caparidácias, de propriedades medicinais, cujas folhas têm pérolas lanceoladas e cujo fruto é uma baga globosa com sementes de testa dura e lenhosa. (Em Pedra Branca-Ce, há um açude com esse nome e em Pernambuco há uma cidade com o nome Vila Trapiá)

O AUTOR:



Caio Porfírio Carneiro nasceu em Fortaleza-Ce, a 07 de junho de 1928, onde trabalhou como jornalista e bacharelou-se em Geografia e História pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza. Ao lado de Moreira Campos, Eduardo Campos e Fran Martins, expoentes do Grupo Clã, Caio Porfírio é um dos mais fecundos cultores do conto no Ceará, como assinala Nilto Maciel. Mudou-se para São Paulo em 1955, onde trabalhou, inicialmente, na imobiliária de um irmão e foi redator de programas da Rádio Piratininga. Durante anos, trabalhou na Editora Clube do Livro Ltda. Em 1963, assumiu a função de secretário administrativo da União Brasileira de Escritores de São Paulo (UBESP). Sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, do PEN CLUBE-SP, da Academia Paulistana da História, da Academia de Letras do Brasil (Brasília), da Unión Cultural Americana (Buenos Aires) e sócio correspondente da Academia Cearense de Letras. É colaborador de vários suplementos do País, com ficção e crítica literária. Assinou a apresentação de dezenas de obras, dos mais diversos gêneros Alguns dos seus livros alcançaram várias edições. O romance O Sal da Terra foi traduzido para o italiano e o árabe e adaptado em roteiro técnico para o cinema. Contos seus estão incluídos em duas dezenas de antologias. Embora seja também romancista, poeta, novelista e crítico literário, foi no conto que ele se afirmou o como um dos mais importantes representantes do gênero na literatura brasileira contemporânea. Está vivo e em plena atividade.



Suas obras se caracterizam pela síntese, pela sutileza e pela sobriedade da linguagem. Caio Porfírio exercitou vários gêneros literários, transitando pelo regional, pelo urbano, e pelo enigmático. Na forma dos contos, vai rompendo, nas obras seguintes, a estrutura tradicional vista em Trapiá e ousando com enredos não-lineares, fragmentados; intercalação de foco narrativo e outros procedimentos de vanguarda, como, inclusive, a incorporação de técnicas de outros textos, como os do teatro e das orações religiosas.

Contos:

Trapiá (1961);

Os Meninos e o Agreste (1969);

O Casarão (1975),

Chuva - Os Dez Cavaleiros (1977),

O Contra-Espelho (1981)

Dez contos escolhidos (1983)

Viagem sem Volta (1985),

Os Dedos e os Dados (1989),

A Partida e a Chegada (contos e narrativas)(1995)

Maiores e Menores (2003)

Romances:

O Sal da Terra (1965)

Uma Luz no Sertão (romance-reportagem) (1973/2007)

Novelas

Bala de Rifle (novela policial)(1965),

Três Caminhos (1988)

Dias sem Sol (1988)

A Oportunidade (1986).

Ensaios:

Do Cantochão à Bossa Nova (ensaio sobre música popular brasileira)

A vocação nacional da UBE – 62 anos (Histórico da UBE desde a sua fundação) (2004)

Literatura juvenil:

Profissão: esperança (1986)

Quando o Sertão Virou Mar...,(1986)

Da Terra Para o Mar, do Mar Para a Terra (1987)

Cajueiro Sem Sombra (1997)

Poesia

Rastro Impreciso (1988)

Reminiscências (memorialismo)

Primeira Peregrinação (1994)

Contagem progressiva (1988)

Mesa de Bar (1997)

Perfis de Memoráveis (autores brasileiros que não alcançaram o 3º milênio) (2002)

Miscelênea (literária)

Gramíneas (2006)



O gênero ‘conto’: Na estrutura do conto, há um só drama, um só conflito. Rejeita as digressões e as extrapolações, pois busca um só objetivo, um só efeito. Com isso, a dimensão do conto é reduzida: o autor usa a contração, isto é, a economia dos meios narrativos. Essa preferência pela concisão e a concentração dos efeitos torna o conto uma narrativa curta. Uma característica importante é que ele termina justamente no clímax, ao contrário do romance, em que o clímax aparece em algum ponto antes do final.

O espaço físico da narrativa normalmente não varia muito devido à própria dimensão do conto. A variação temporal não importa: o passado e o futuro do fato narrado são irrelevantes. Caso seja necessário, o contista condensa o passado e o expõe ao leitor em poucas linhas.

Devido a essas características (pequena extensão e pouca variação espacial e temporal) o número de personagens que participam do conto é pequeno. Também não há espaço para personagens complexas: a ênfase é colocada em suas ações e não em seu caráter.

É claro que essas características do conto podem variar de uma época para outra, mas essas variações ocorrem em maior ou menor grau, constituindo sempre uma estrutura básica que configura o gênero.



Características do conto:

Narrativa concentrada e limitada ao essencial; Apresenta os elementos básicos da narrativa: fatos, personagens, tempo e lugar; O enredo apresenta normalmente a seguinte estrutura: apresentação, complicação, clímax e desfecho; Número reduzido de personagens; Tempo e espaço bastante delimitados; Pode apresentar narrador-observador ou narrador-personagem; inguagem predominantemente de acordo com o padrão culto, formal ou informal, da língua.



O Estilo do autor: Quase todos os livros de contos de Caio apresentam características de romance. Em Trapiá, , por exemplo, todas as histórias têm como cenário a pequena cidade de Trapiá e os vilarejos e sítios bem próximos, personagens reaparecem, revezando-se a cada conto, dando a impressão de que todos se conhecem. Nesse, como em outros livros seus,.os enredos são construídos com uma linguagem sintética e precisa; os personagens têm voz e certa densidade, pois observam, constatam, agem e, muitas vezes surpreendem. Cyro de Matos observa que o estilo enxuto e sintético de Caio Porfírio Carneiro projeta densidade humana, forçando o leitor participar da história, tornar-se cúmplice do destino dos personagens com sua feição sofrida. A intensidade que emerge do discurso feito com observações lúcidas sustenta certa atmosfera que evolui em seus ângulos críticos na medida em que a história caminha para o desfecho imprevisível. O epílogo força qualquer um a pensar sobre a complexidade do mistério da existência”. De fato, o narrador, sempre em 3ª pessoa nos contos de Trapiá, contam acontecimentos da vida seres sofridos, mas esperançosos, valentes, resistentes aos sofrimentos das secas ou das enchentes, das humilhações ou da solidão, da pobreza material, das perdas.

Ainda de acordo com Matos, “nestes contos não se vê a intenção do escritor em fixar tipos, linguagem, valores e costumes de determinada região, transpondo os elementos para o literário em seu espaço documental típico. O contista não experimenta a linguagem, embora se mostre íntimo do território humano que projeta, pouco a pouco, no texto enxuto. Não chega a forçar em algum momento as emoções para sustentar o drama. A cumplicidade que emerge do leitor em torno de alguns dos personagens decorre da capacidade que tem Caio Porfírio Carneiro de alcançar sentimentos verdadeiros, que são de nós humanos, com nossas permanentes comoções. A matéria desses contos não é outra senão a criatura humana nos incidentes, encontros e desencontros da existência”. Embora apareçam os coronéis, os barqueiros, o pai ignorante e honesto, o empregado matreiro, não há estereótipos marcados. Também não falta a dimensão humana desses seres de papel que vivem sem muita escolha. Com estilo próprio, Porfírio recorta ‘momentos’ para desenvolver suas histórias e, muitas vezes, dá ao leitor a chance de terminá-las com sua imaginação. Os diálogos são enxutos, bem contextualidados, sempre fiéis ao nível de linguagem dos personagens.

A OBRA:



TRAPIÁ é o primeiro livro de Caio Porfírio Carneiro, cearense de Fortaleza (07/06/1928), radicado em São Paulo desde 1955. É uma coletânea composta por 11 contos, todos regionalistas. O primeiro texto – “Como nasceu Trapiá” – não é um conto, mas uma explicação sobre o surgimento da cidade que será cenário das narrativas, todas histórias da “terra áspera, calcinada, de coronéis, arrieiros, velhos solitários, gente humilde do interior, meninos com a infância sofrida”(Matos).

Tempo: Não há tempo psicológico em nenhuma narrativa, embora, em muitos contos não percebamos o tempo cronológico seqüenciando a narrativa. É Matos quem diz que isso decorre da técnica do contraponto. O narrador não descuida do leitor e expõe os fatos de modo que ele não se desinteresse pelas histórias relatadas, sempre mantendo os personagens em ação, mesmo dentro do drama que vivem. Em “Come gato”, um dos contos mais longos, com partes numeradas, como a dividir as cenas, percebe-se a simultaneidade das situações.



Espaço:. O espaço da maioria dos contos é a cidade de Trapiá e seus arredores, que aparecem como cenário ou apenas nas referências dos personagens: Taimbé, Coité, Pitombeira, Serra do Machado, Brejo da Ema, Canta Galo, Fazendas Queimadas, Cerrado e Contendas, todos lugares imaginários, situados no sertão, na caatinga, todos terra calcinada. Ao narrador parece não importar muito retratar as paisagens e os ambientes, pois as descrições são mínimas. A repetida referência ao vento Aracati remete imediatamente o leitor atento ao Ceará. Aliás, a presença do vento é uma constante nos contos de Trapiá. O último do volume, como a confirmar, é intitulado justamente “Ventania”.



Estilo de época: Pós-modernismo - Na arte, os anos 60 marcam o momento da transição da vanguarda para a contemporaneidade. O atestado de óbito da Modernidade. Os procedimentos da arte passam dos polêmicos questionamentos dos suportes tradicionais ao fim do suporte como elemento essencial da obra de arte. É o momento da arte conceitual que vai dominar na década seguinte. Uma arte mais fria, cerebral, menos engajada, voltada para interrogar sua própria natureza. Uma manifestação que aconteceu em vários Países , quase ao mesmo tempo, inclusive no Brasil. Os artistas plásticos abandonam os museus, as galerias, saem da solidão dos ateliês e se misturam na multidão. É a poética do gesto, da ação, da coletividade, a utopia da arte / vida como participação do espectador na realização da obra de arte. No Brasil a Tropicália, de Hélio Oiticica, foi uma das manifestações mais polêmicas, ao lado de Terra em Transe filme experimental barroco de Glauber Rocha e a

Peça O Rei da Vela, de Osvald de Andrade, dirigida por José Celso Martinez.



É a década dos Happenings, surgidos com a Pop arte, uma espécie de teatro instantâneo, uma mistura de artes visuais, música e dança, que convida o espectador a participar da obra ou da ação, uma forma de tirá-lo da passividade, fazendo-o reagir à provocação do artista e do cotidiano político social. Para Jean Jacques Lebel, autor de vários happenings em Paris: “Nosso primeiro objetivo é transformar em poesia a linguagem que a sociedade de regionalista que surgiram no Romantismo; a narrativa fantástica, que se configurou como gênero também no séc. XIX, o ultra-realismo, que nada mais é, do que o velho Naturalismo; as crônicas memorialistas que já existiam, mas não eram consideradas

literárias alcançaram esse status; as narrativas políticas e intimistas iniciadas no Modernismo intensificaram-se e, com a legitimação da pluralidade e a ficcionalização de

variados gêneros, surgiu o romance-reportagem, trazendo a linguagem do jornalismo para a

literatura num diálogo promissor.

Caio Porfírio não se restringiu a nenhuma tendência específica: exercitou o conto regionalista e o urbano, o romance-reportagem, a poesia, a novela, a crônica memorialista, enfim, diversos gêneros e tendências, com estilo próprio, sem ater-se a experimentalismos radicais ou reverenciar ‘revoltas artísticas’, embora, em suas obras seguinte à Trapiá, tenha utilizado técnicas diversas, inclusive de vanguardas.



Contexto histórico: Trapiá surge no ano em que os soviéticos enviam Iuri Gagárin ao espaço. Independente desse marco, a década de 60 é marcada pela revolução comportamental, com o surgimento do feminismo e dos movimentos civis em favor dos negros e homossexuais. O Papa João XXIII abre o Concílio Vaticano II e revoluciona a Igreja Católica. Surgem movimentos de comportamento como os hippies, com seus protestos contrários à Guerra Fria, à Guerra do Vietnã e o racionalismo. Esse movimento foi também a chamado de contracultura. Ocorre Revolução Cubana na América Latina, levando Fidel Castro ao poder. Tem início também a descolonização da África e do Caribe, com a gradual independência das antigas colônias.

Foi um período marcado, pelo menos os 5 primeiros anos, por um sabor de inocência e até de lirismo nas manifestações sócio-culturais, e no âmbito da política é evidente o idealismo e o entusiasmo no espírito de luta do povo. Foi inaugurada Brasília, a nova capital do país, por Juscelino Kubitschek. Jânio Quadros sucede Juscelino e renuncia cerca de sete meses depois, sendo substituído pelo então vice-presidente João Goulart. De 1966 a 1968 (porque 1969 já apresenta o estado de espírito que definiria os anos 70), as coisas mudam: experiências com drogas, perda da inocência, revolução sexual e protestos juvenis contra a ameaça de endurecimento dos governos. Sob o pretexto das tendências comunistas de Jango, ocorre o golpe militar de 1964, que depõe Goulart e institui uma ditadura militar. No final da década, tem início o período conhecido como "milagre econômico". Em 1969, integrantes da ALN e do MR-8 seqüestram o embaixador norte-americano Charles Elbrick, exigindo como resgate a libertação de 15 prisioneiros políticos. Após isso, diplomatas da Alemanha e do Japão também são seqüestrados no Brasil.

Na verdade, a segunda metade dos anos 50 já prenunciava os anos 60: a literatura beat de Jack Kerouac, o rock de garagem à margem dos grandes astros do rock (e que resultaria na surf music) e os movimentos de cinema e de teatro de vanguarda, inclusive no Brasil. A década de 1960 é marcada pela velocidade das vanguardas artísticas, que têm Nova Yorque como capital cultural do século XX. Dentre as manifestações artísticas como Minimalismo, Op Arte, Arte cinética, Novo Realismo e Tropicália, a Pop Arte surgida na Inglaterra, mas apropriada e difundida pelos norte americanos foi a vanguarda mais decisiva da década. Sem programa preestabelecido, sem manifesto, utilizando-se do repertório do cotidiano do consumo e da cultura de massa, foi rapidamente transformada em tendência internacional. Isso mostrou o poder cultural dos americanos.

No Brasil estudantes em passeata enfrentam a repressão militar; em abril de 1968, a polícia mata o estudante secundarista Edson Luiz no Rio de Jane iro e em dezembro o golpe mortal do governo militar, o Ato Institucional Nº.5. O auge da repressão. Ninguém mais se sentia seguro. A arte foi proibida na rua, exposições fechadas, como a Bienal Nacional em Salvador e artistas presos ou vivendo na clandestinidade ou no exílio. Fecharam-se as cortinas e o espetáculo passou a ser encenado na obscuridade. Até hoje a arte brasileira vive o prejuízo desses anos de sansão e petrificação da cultura brasileira

Personagens: Coronéis, arrieiros, viúvas, velhos solitários, mulheres que engravidam todos os anos, crianças, sobretudo meninos, com a infância maçada pela pobreza e pelo sofrimento; a maior parte, gente humilde do interior, que trabalha na terra áspera, em comboios, canoas.

Foco narrativo: Todos os contos são narrados na 3ª pessoa verbal; têm, portanto, os fatos relatados por um narrador observador, que não tem total domínio dos acontecimentos. Note-se que, o tempo todo, intercalam-se os discursos diretos e indiretos, o que faz com que a ação dos personagens tenham bastante importância no desenvolvimento da trama, retirando ar possibilidade de onisciência narrativa.

Características da obra Trapiá:

Regionalismo: Nota-se, nos contos de Trapiá, um retorno de Porfírio à sua região nordestina que, nesta obra, é, certamente, fonte de inspiração para suas histórias. Ele, entretanto, ultrapassa essa dimensão do tão-somente regional e atinge o universal ao enredar suas verdades, tristezas e dores, da mesma forma que fez Guimarães Rosa. Algumas expressões típicas: “casa do sem jeito”, “potoca’, “de vera”, “tapuru de gente’, “mucuim do inferno”, “embiocado”,“canarana”, “mofumbó”, “varejão”, ton-fraco de capote”, “neu”, “desbilotada” “maluvido”, “manga”(no sentido de pasto), “baticun”, “capionga”, “mode”, “cachimbeira”, “gasguito” “bichinho”, “socar-se”, “rachar de peia”, “oitão”.

O uso da linguagem coloquial: recurso que dá verossimilhança à fala dos personagens e marca a simplicidade deles: tou, tar (estou, está); té logo, neu (em eu/em mim); Inhor sim (sim, senhor); desafasta, tu não anda; vosmecê; queu (que eu); cê, pegou ele; eu é Olavo. Como a coadunar perfeitamente forma e conteúdo, além da paisagem sertaneja e histórias de sua gente, os contos resgatam não apenas a fala coloquial e as expressões típicas, mas reproduz imagens através do léxico que nomeia objetos (bilros de almofada, cabresto, cangalha, grajaú), costumes (cavalo de talo de carnaúba, lava pés antes de deitar) e vegetação (cumaru, mata-pasto, pitombeira, oiticica, pega-pinto, cansansão, gerimataia), como num painel da cultura local.

Sutileza e sobriedade de linguagem - A utilização de termos e expressões típicas da região retratada na obra ocorre de maneira comedida; pois aparecem incorporados ao discurso dos personagens, bem contextualizados, não incorrendo, por isso, o contista, em exageros que tornem os textos cansativos.

Síntese – Conciso em suas colocações e econômico com as palavras, Porfírio mostra, já no primeiro livro, conhecimentos da técnica narrativa. Ele arma as histórias, como se armasse um bote e, ao enredar o leitor na fala dos personagens, nos movimentos e constatações deles, surpreende-o com finais inesperados, seja pela trivialidade ou pelo inusitado que causa surpresa ao leitor (então o coronel sabia de tudo em, “Milho empendoado”?). Essa sua capacidade de síntese e equilíbrio não tira a intensidade de seu discurso, nem deixa lacunas desnecessárias entre o leitor e a história que lê.



Intertextualidade homo-autoral: os contos dialogam um com o outro. Como se passam, todos, basicamente, na mesma localização – entre a cidade de Trapiá e circum-vizinhanças - os personagens se repetem, transitam em uma e outra história, como se compusesse, cada unidade,.o núcleo de um enredo maior. Como vivem na mesma região, os personagens se conhecem, transitam pelos mesmos espaços e, embora vivam histórias autônomas (para entender um conto não se precisa ter lido outro) têm-se a impressão de estar diante de um quase-romance, dada a unidade na diversidade de casos.

Vejamos alguns exemplos: no conto “O canoeiro”, quando ele narra o crime cometido pelo Pereira, no enredo de “A dívida”, confirmando, inclusive, os defeitos do Queiroz. É como se a ação dos dois contos fossem simultâneas. Já “Milho empendoado”, o Coronel Camilo fala sobre a visita que fará ao amigo Firmo, que perdeu a esposa Dona Amélia; na narrativa de “Macambira”, encontramos esse mesmo Seu Firmo, resistindo à seca, conservando seu patrimônio e vivendo sua solidão de viúvo; falando sobre a resistência à seca, um dos personagens faz menção ao Cel. Camilo e sua fazenda. O Coronel Aparício que manda o cabra Tacanha agredir Seu Leocádio em “Come Gato” é o mesmo do conto “Padrinho”, que nega ajuda ao empregado para socorrer a criança no meio da noite. Em “Ventania”, o velho Aristides dá notícia da morte do Lino da Serrrota ao amigo Sabino, o mesmo Cel. Lino que é levado na canoa por Chico, no conto “Canoeiro”.

• TEMAS: solidariedade (“Mata-Pasto”,“Come Gato”); ignorância (“O Pato do Lilico”); astúcia e prepotência dos coronéis (“Milho Empendoado” e “O padrinho); a afeição (Velha Candoca em “Candeias”); solidão na velhice (“Ventania”) e ódio revertido em amor (“O Gavião”). A morte é uma constante, nos contos, por doença, afogamento, assassinato, mordida de cobra, mostrando a precariedade do homem diante da sua maior certeza. O tema é, na verdade, o ser humano em sua capacidade de amar e desamar, em sua solidão, sua dor, sua humildade e seu orgulho, num calidoscópio de sensações e sentimentos que compõe a diversidade humana.

• ENREDOS - Nas onze histórias de Trapiá, de acordo com Matos, percebem-se nuanças clássicas do “realismo, com observações exatas nas cenas sobre seres e objetos da realidade imediata, a estrutura tradicional da narrativa curta fragmenta-se no lugar de ser desmembrada linearmente. A ação dos personagens que, em pequenos blocos cruzam e se entrecruzam no desenvolvimento da trama, retiram qualquer possibilidade de onisciência narrativa, da qual aflora o drama sem desprezar a ternura. O recurso da síntese manipulado pelo contista consegue no final imprevisível o efeito intenso”

• Como nasceu Trapiá – Texto de abertura, escrito pelo próprio autor, contando a origem do vilarejo de Trapiá, antigamente apenas um descampado, com uma oiticica e um trapiá plantados, exatamente onde cruzavam os caminhos da “Vila Coité ao Serrote do Machado e da Fazenda Taimbé no rumo dos cafundós do sertão”. Retirantes da seca do Pernambuco, da seca de 77 construiram casebres nessa caatinga, onde foi morte e dependurado na oiticica o cangaceiro Nestor Amarício.



Milho empendoado – Chico, empregado da casa do coronel Camilo, sem recursos para alimentar a mulher ‘de cria’ rouba galinhas do quintal do patrão para que a sogra faça as canjas de que ela necessita. A velha Rita, no diário ritual de jogar milho para as aves, reclama do marido, citando os inusitados nomes das sumiram (Pedrés, Capão, Indiano), dando pela falta de mais uma. O velho, entretanto, entretido com os problemas das terras, faz ouvido de mercador, até o dia em que designa Chico para cuidar do sumiço das galinhas, tendo a sutileza de desviar as desconfianças para o vizinho, Doroteu. No final, entretanto, surpreende o leitor ao revelar à mulher que “não pegou o ladrão, mas acabou com o roubo, quando mandou o suspeito vigiar suas aves”.

O pato de Lilico – Em um dos raros passeios à cidade, o menino Lilicoo se desliga do pai, enquanto ele faz a entrega da carga que fora levar, e vai à praça admirar as crianças que estão a brincar. Açoitado por elas, é socorrido por um rico senhor que, compadecido com dua humildade, leva-o a uma loja de brinquedos onde tem um boneco de Papai Noel, e o presenteia com um pato de brinquedo. Quando o menino retorna, o pai não acredita que o ele tenha recebido o brinquedo de presente e, em sua ignorância e estupidez, pensa revoltado que o menino havia roubado o objeto e toma-o do filho, que faz o longo trajeto até a sua casa o tempo todo chorando. A criança não consegue mostrar sua inocência, pois o pai não quer ouvi-lo. Já em casa, quer puni-lo com uma surra, mas a mãe o impede.Ele quebra o brinquedo e pisa com raiva, enquanto a mulher na cozinha diz para o filho se calar, e recomenda-o nunca mais repetir o erro, pois “Nosso Senhor o castigará”.

O Gavião – Um menino se revolta, porque um gavião rouba e devora seu canário de estimação, e insiste para que o pai o mate. Depois de várias tentativas frustradas, o menino passa a descobrir a astúcia e a beleza da ave e a admirá-la. Deseja, então, possuir uma, também para provar aos amigos sua coragem. Um dia, o pai mata a ave e o chama para vê-la abatida e, enfim, vingar a morte do canário. O menino fica imensamente ressentido, pois o seu ódio já havia se transformado em amor.

A dívida – Pereira, após brigar com Queiroz na feira da cidade e feri-lo com uma faca, foge com a mão ferida e procura abrigo na casa do amigo Gerardo, que fica fora da cidade. Gerardo o recebe surpreso, as vê-lo esfarrapado e sangrando, esbaforido da correria, ouve o seu relato e fica sabendo que o amigo, ao cobrar uma dívida do Queiroz que há meses lhe comprou uns bezerros, é agredido, xingado e reage tomando a faca do devedor e derrubando-o. Certo de que matou o homem, Pereira se angustia e pede ajuda. Gerardo vai à cidade apurar os fatos e pedir ajuda ao ‘doutor Soares’, de quem o criminoso é eleitor. Enquanto isso, o Pereira fica imaginando para onde será ‘degredado’ pelo político e passa a sonhar em enriquecer na Serra do Machado e voltar triunfante à cidade natal, com todos à sua volta fazendo reverência. Ao retornar da cidade, Gerado o avisa de que o Queiroz foi apenas ferido e que o ‘doutor Soares já o advertiu de que deverá pagar a dívida. Pereira, já envolvido com o sonho de viver e enriquecer na Serra, demonstra decepção.

Come gato – O narrador traça duas histórias paralelas: a do menino Olavo, que vive a constante humilhação de ser chamado de “Come Gato”, quando passa pela rua, e a do Seu Leocádio, que vive as contendas políticas com seu adversário, o Cel. Aparício. Seu Leocádio é o único que trata o pobre Olavo, que mora num quartinho nos fundos de uma oficina, com respeito, chamando-o pelo nome, e oferecendo-o comida. Sabendo que Seu Leocádio foi agredido dentro de sua própria casa pelo Tacanha, capataz do Cel. Aparício, Olavo vai à sua procura e o mata com uma faca, dizendo que “”Em coronel Leocádio ninguém encosta a mão”. Impune em seu heroísmo anônimo, Olavo retorna à cidade e tudo volta ao normal: Seu Leocádio está na calçada, paparicado pelos correligionários e contando a ‘vingança’, os meninos correndo atrás dele e chamando-o de Come gato e, finalmente ele sendo recebido pelo velho, que o oferece comida com a delicadeza de sempre. A história, intercalada em 8 blocos narrativos, parece ilustrar ações simultâneas. Ao mostrar a solidariedade do menino sujo com o velho que lhe é generoso, ultrapassa-se o realismo do menino miserável para torná-lo herói, ainda que anônimo.

Mata-Pasto – Chico, empregado do Coronel Henrique, acostumado a capinar o mata-pasto e tirar as cobras, vive a maturar a idéia de um dia, à noite, entrar no quarto da velha Clotilde e furtar a lata que ela guarda cheia de dinheiro. “Dez anos trabalhando como burra sem mãe” e nada tinha. Um dia, aproveitando que o patrão deixara de cortar o pasto e podia se esconder, resolve agir: inventa para a mulher que vai visitar uma tia doente na cidade e fica de tocaia no meio do mata-pasto, acompanhando o movimento da casa, vê Cel Henrique chamar os netos para dormir, depois lavar os pés na bacia, derramar a água, escuta as ordens de Dona Clotildes para Lourdes e, enquanto calcula sua entrada na casa para roubar a lata com dinheiro e enterrá-la debaixo do pé de oiticica, sente uma picada no pé direito. Começa a delirar e desmaia, pois, na verdade, foi picado por uma cobra. Os outros empregados, de manhã cedo, encontram o corpo e levam-no para a casa do Coronel, que não entende o que Chico fazia ali naquela noite. Joana, a esposa, chega chorosa. Após alguns dias, por ironia do destino, Dona Clotilde manda um presente para a viúva: a lata com suas economias – trezentos mil réis – para ajudá-la a continuar a vida.

Macambira – O velho Firmo, viúvo de Dona Amélia, resiste à seca, tentando conservar seu patrimônio, sem ceder às ofertas de compra; recusa-se a ir morar com os filhos em São Paulo e vive com o olhar perdido no poente, conversando em silêncio, trocando o nome da empregada Raimunda pelo da esposa Falecida. Vive a examinar o tempo, do seu alpendre, falando com quem passa pela estrada e tomando conta do que é seu. Conserva seu gado com muitos gastos, e aprende a conviver com a solidão, alimentado pelas lembranças da casa cheia e esperando a chuva, suportando o casarão vazio e o vazio de sua vida, “porque um homem não se dobra... nem quando perde a mulher”

O padrinho – O miserável Chico, vendo a filha muito doente em uma rede, e a esposa grávida a pedir socorro e implorar-lhe para pedir ajuda ao patrão, vai, no meio da noite, bater na porta do Coronel Aparício. Aborrecido, o velho o atende e nega a ajuda, ordenando-lhe que deixe para quando o dia amanhecer. Compadecido com a situação da filha e da mulher, ele resiste à vontade de esperar o dia amanhecer e vai à cidade pedir um remédio ao farmacêutico, com quem já tem dívida. Após a cobrança, é atendido, mas, quando chega ao seu casebre, percebe a presença da vizinhança e fica sabendo que a filha morrera. Avisa ao patrão, padrinho da menina morta, esquecido da humilhação, mas ele mal escuta, apenas o dispensa do dia de trabalho. Dias depois, sua mulher dar luz à outra menina e ele, humildemente, volta ao Coronel Aparício para avisá-lo e convidá-lo, outra vez, para padrinho da criança.

Candeias – O afoito menino Rafael, em suas vadiagens pelo açude da cidade, acaba morrendo afogado e ficando preso nas raízes da Oiticica. Pedro e Zeca, numa canoa, com candeias na mão, tentam resgatar o corpo do menino, enquanto a mãe, o irmão e amigos, esperam o resultado da ação. Enquanto isso a Velha Candoca, com quem Rafael implicava mandando os companheiros sujar os panos do coradouro e chamando-a de “velha cachimbeira”, recorda a noite chuvosa em que o marido morreu afogado e sente dó do que aconteceu com o menino. Quando encontram o corpo menino morto, da sua calçada, acompanha o cortejo com o olhar, imaginando que “ na certa estaria deformado, inchado, sem o sorriso moleque”, e se comove, enchendo os olhos de lágrimas, pois nunca mais ouviria a provocação: Velha cachimbeira!

O canoeiro -.Outro personagem com nome Chico, dessa vez um canoeiro, vive a atravessar o rio para levar pessoas e mercadorias à cidade de Trapiá. No período da cheia, os outros canoeiros se recolhem e ele, herdeiro da ‘valentia’ do pai, aproveita para trabalhar mais e juntar dinheiro para comprar uma canoa maior. Aumenta bastante o preço da travessia, cobrando pelo perigo que enfrenta. Ele se recusa a baixar o preço, inclusive para uma senhora que quer atravessar com o neto para ver a filha que está muito doente. Numa madrugada chuvosa, procuram-no em casa para atravessar o rio com o corpo de um coronel morto e sua viúva. Seriam duas viagens, pois teria que voltar para atravessar outros parentes que iam assistir ao enterro. Quando descobre que estão sem dinheiro, recusa o serviço, mas é convencido a fazê-lo para receber o dinheiro depois. Comovido, ela acaba dispensando o pagamento à viúva e diz que fez por caridade, embora ela continue a prometem que mandará o filho recompensá-lo. Após a cheia, as pessoas se recusam a fazer o transporte com ele, relembrando como ele subiu os preços na época em que só havia a canoa dele para fazer o trajeto. Sem clientes, gastando o dinheiro que economizara, ele se surpreende como uma visita: o filho do Seu Lino (o morto). Mesmo em situação difícil, ele recusa-se a receber o pagamento, pois já empenhara a palavra, mas aceita que ele compre a canoa grande com que tanto sonhava, para pagá-lo aos poucos. Causa admiração em todos da vila, faz o transporte de graça durante um dia, mas, no outro, volta à ativa com seu temperamento irredutível, cobrando caro pelo serviço. Outra vez encontra a mulher e o neto, de volta para atravessar o rio, e, ao saber que a filha dela morrera, nada lhe cobra. Orgulhoso em sua canoa nova, diz a ela que era amigo do Seu Lino e recebe os pêsames dela.

Ventania – O velho Aristides, apegado à sua fazenda Cerrado, continuava a briga anscestral pela posse da manga, mantendo, por isso, a velha rixa com o vizinho. Irritado com uma notícia que recebe do vaqueiro Nena, não comunicada ao leitor, ele chama o compadre Sabino e entrega-lhe o gado. Deitado na sua rede no alpendre do casarão, administrava sua fazenda e não cedia sua terra ‘para o que pediam’. Ruminava seu apego ao Juazeiro, olhando a ventania e dizia que abria mão de tudo, menos daquela árvore: “O meu juazeiro ninguém derruba”. Numa manhã, a velha Tereza o encontro morto em sua rede. Os coronéis de outras fazendas (personagens de outros contos) vão ao enterro e toda a gente dos arredores fica conversando sobre os feitos do velho. Dias depois, a velha Tereza, sem suportar a solidão no casarão, vende as terras ao vizinho e vai embora para a cidade. O Juazeiro é, então, derrubado para as obras da manga, e os dois empregados que fazem o serviço – Zé de Góis e Mundoca – comentando o capricho que o velho Aristides tinha com aquela árvore, cavam a terra e encontram uma lata enferrujada. São interrompidos pelo chefe do serviço e guarda-na para abrir depois. O leitor não conhece o conteúdo da lata, mas fica imaginar... e passa a saber que era a botija a razão do apego do velho à arvore.



BIBLIOGRAFIA:

CARNEIRO, Caio Porfírio. Trapiá, 4ª, edição, Ribeirão Gráfica e Editora, São Paulo, 2003.

GOMES, Celuta e AGUIAR, Thereza da Silva. Bibliografia do conto brasileiro, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1969.

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 1987.

MATTOS, Cyro de. Trapiá, de Caio Porfírio Carneiro In: Jornal da poesia

MACIEL, Nilto. “Os enigmas de Caio Porfírio Carneiro”.In:www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=2093 - 175k –

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.

Consulta ao site: pt.wikipedia.org/wiki/Anos



Alguns outros contos:

(Fonte: http://www.revista.agulha.nom.br/cporfirio.html )



A vingança







Ele andava lentamente à minha frente. Aproximei-me.

Emparelhamo-nos. Sorri:

- Bom dia.

- Bom dia.

O bom dia dele foi de susto e curiosidade. Voltei a sorrir:

- O senhor não me conhece. Mas devo conhecê-lo.

- De onde?

- Depois lhe digo.

Chuvinha miúda e nós dois sem guarda-chuva. Poucas pessoas passavam por nós. A igreja ali em frente, a banca de jornais e revistas tampando-me um pouco a visão da fachada. Meu desprezo por aquele homem ampliava-se:

- Vai comprar jornais ou vai rezar?

- Vou rezar.

- Acompanho.

- Mas quem é você? Não estou reconhecendo.

Os olhos dele eram apertados, como de míope, mas não usava óculos. A calvície luzidia, onde rebrilhavam pingos de chuva.

- Não importa agora. Não vai rezar? Eu o acompanho. Rezar é bom. Alivia. Não é mesmo?

Olhava-me com rapidez. Apressou o passo. Apressei o meu. E emparelhados chegamos à igreja. Dei-lhe passagem, que a porta era estreita:

- Faça o favor.

Ele se ajoelhou próximo ao altar, olhos meio fechados fitos na cruz enorme, a cabeça de Cristo bambeada para a esquerda. Procurava afastar-se de mim, visivelmente incomodado, e eu pregado nele. As suas mãos, cruzadas, tremiam, e os lábios caídos balbuciavam palavras em direção à cruz.

A raiva não me cessou. Cresceu. Não me contive, cochichei-lhe ao ouvido:

- Você me paga, canalha. Vai ver.

Pela primeira vez abriu desmesuradamente os olhos, pestanejando muito, e eu me fui, o eco dos meus passos reboando na nave quase deserta, duas-três cabeças dispersas e contritas.

Na rua, sol nos olhos, que a chuva se fôra, desorientei-me um pouco. Depois, suando muito, andei de cá para lá, de lá para cá, concentrando-me, inutilmente, para descobrir quem seria aquele homem, a fim de vingar-me dele.

Desalentado, voltei para casa.



Não Dá...







- Quero isto pronto ainda hoje.

- Hoje?

- Hoje.

Olhou o sol declinado e descobriu, aflito, que não conseguiria cumprir a tarefa antes do cair da noite. Mas baixou a cabeça e entregou-se, com a máxima rapidez, a ladrilhar, o suor pingando do queixo, das axilas. Na pressa e no nervosismo quebrou alguns ladrilhos.

- Meu Deus.

O sol descia e o ladrilhado avançava pouco. A vista turvou. Sentou-se no chão, abanou-se com o velho chapéu. Fome medonha. Sede medonha.

Os passos aproximaram-se:

- E então?

Olhou para ele, súplice:

- Não dá...

Primeiro o pigarro, depois a decisão aborrecida:

- Tudo bem. Chamo outro para o serviço. Pode ir. Venha amanhã receber as horas de serviço.

Ainda quis argumentar, o alpendre era grande. Apenas levantou-se, pôs o chapéu na cabeça e rumou para casa.

A primeira pergunta, logo à entrada, os olhos dela esperançosos:

- Arranjou serviço?

A sede confundia-se com a fome. Olhou além dela e viu o monte de ladrilhos e o vasto alpendre.

- Não deu...

Sentou-se à mesa, mãos cruzadas ao queixo, à espera de alguma coisa que ela lhe pudesse trazer para comer.





Dueto







Ao cair daquela tarde fagueira, à sombra das bananeiras e sem borboletas azuis, ele, assoviando, gingando, enxada dançando no ombro, viu-a tomando banho nuinha, nuinha. Esbugalhou os olhos, estacou e disse, Vixe, que coisa mais linda, mais cheia de graça, Jesus Cristo Nosso Senhor. E ficou de olhos acesos nos peitinhos, na xoxota, nas coxas de alabastro, na bunda arrebitada. Desandou um pouco, levado pelo nervosismo, o graveto quebrou, ela ouviu e descobriu:

- Por que estás me olhando, Caturapota?

- Ele se entortou todo, mordeu o talo de capim, sem saber onde se meter.

- Não estava te olhando não, Viviane das Dores.

Ela, mais nua que nunca, pôs as mãos nos quadris: - Não estava, hem. Pois pode olhar. Olha. E porque ela se oferecia toda, cabeça levantada, plantada nas pernas, desafiante, ele amunhecou. Perdeu o rebolado, esqueceu a fagueira tarde, e voltou, rabo entre as pernas, a roçar o pasto, antes de escurecer de todo. Ela ainda cantarolou e enxugou os cabelos longos, torcendo-os como quem torce pano. Vestiu o vestido transparente, quase camisola, que grudou rápido no corpo. E lá se foi cantarolando, Não há , ó gente, ó não, luar como este do sertão. A bacia, com roupas lavadas, segura à cintura.

Ele roçou à toa, que entre os olhos e o milho e o feijão que nasciam se interpunha o corpo de leite, os bicos dos seios, o chumaço de entre as pernas. A enxada por pouco não lhe alcança o pé.

- Porra.

E foi para casa. Chutou a cobra que passou coleante. Lá do alto viu a casa dela e ela a se pentear.

O braço acenou:

- Olá, Caturapota!

- Oi!

- Vem cá, criatura.

Ele se achegou, mudando a enxada de ombro, o coração desesperado, aflito por não saber o que dizer a ela. A vergonha que sentia era uma enormidade.

- Senta aí, Caturapota.

Ele aquietou-se no cepo, chapéu na mão, enxada entre as coxas.

Ela veio, encostou-se nele, um roçar de vai e vem que lhe despertou o fogo sagrado.

- Você gosta mesmo de mim, Caturapota?

Depois que o vento amainou, depois que duas galinhas subiram ao poleiro, animou-se a suspirar:

- Se gosto...

Ela ergueu as saias até surgir a pontinha negra:

- Você me quer mesmo, tesão?

Novo tempo de espera, nova lufada de vento, novo suspiro:

- Se quero...

Ela acomodou-se ao lado dele, tomou-lhe a mão:

- Então me terás e poderás me levar à camarinha. Ele levantou-se, encostou a enxada à parede de taipa, voltou, reverenciou-a em curvatura longa, o chapéu furado varrendo o terreiro: - Com prazer. Dispôs-se a conduzi-la nos braços. Ela, porém, puxou-o para si:

- Ainda não. Ando preocupada.

- Com o que, Viviane das Dores?

- Com os problemas econômicos do país, a péssima distribuição de renda...

Ele, esquálido, sujo de muitos dias sem banho, coçou a barba espinhenta:

- É para pensar.

Ela balançou a cabeça:

- Se a política financeira...

Ele cuspiu seco:

- Por falar em finanças, Viviane das Dores, me dá água, mata a minha sede.

Ela entrou e ele ficou entregue às sombras. Brisa leve. Latido ao longe, para os lados da vila. Escurecera quase completamente. Apenas, lá para os confins, uma tira de vermelhidão.

De repente uma claridade tênue, amarelada, tangeu um pouco a escuridão. Virou-se. Ela avivava o lampião da sala. Veio com a caneca d'água. Ele a sorveu em poucos goles. E ela voltou a se sentar ao lado dele.

- De que a gente estava falando, Caturapota?

Ele pensou, pensou, concluiu mais para si:

- Acho que na merda deste país.

Olhou na direção da vermelhidão que se fora:

- Vamos falar de coisa mais séria?

- Fala.

- Você é muito bonita.

Ela pegou-o pela mão:

- Vinha dele um cheiro forte de suor.

- Para onde, Viviane das Dores?

- Para o quarto.

- Ah.

O silêncio perdurou. A mão dela veio vindo, veio vindo, alcançou:

- Ele está que parece ferro, nossa.

Ele baixou a cabeça, envergonhado. Ela puxou-o num repelão:

- Vambora, cara.

Conduziu-o casebre adentro. O sexo atrapalhava-lhe as pernas. Pararam na sala. Ela baixou o bico de luz. Foi ao pequeno oratório, pregado no canto da parede, trouxe de lá, de junto aos pés de Nossa Senhora, o pequeno rádio de pilha. Riu para ele, um riso mais convidativo:

- Com uma musiquinha é melhor.

Ele apenas fez gesto de tanto faz. Ficou ali esperando, tamborilando os dedos calosos na mesinha de centro. Ela acendeu o toco de vela:

- Vem.

O toco de vela num pires seguro com a mão direita, a esquerda puxando-o como quem dirige um cego. Ele, uma vontade louca, praticamente resistia.

- Quer ou não quer, sujeito? Que merda.

Ela pôs a vela sobre o velho móvel, verniz descascando, tirou o vestido pela cabeça e estirou-se na cama de varas, um oferecimento só. A luz oscilava e desenhava sombras no corpo alvo.

Ele petrificou-se. Os olhos estourados em cima daquela visão que o esperava.

- Vem ou não vem? Meu Deus.

Despertado, como emergindo de um mergulho, ele, aos repelões, jogou os trapos no chão e caiu, fome canina, em cima dela, e nela começou a navegar.

- Devagar, Caturapota.

O desespero dele era sorver aquele corpo de leite num gole apenas, sugá-lo, subir aos céus e enovelados chegarem à mão direita de Deus Pai. E gemia, e grunhia, e vai e vem, e ai minha Vivivaninha meu bem, eu morro, juro que morro, Vi...

- Acabou?

Ele, molengado, largado ao lado dela, ainda não saíra de todo do rodopio. Veio o soninho, leve, passageiro, passos de animal distante, o vento vibrando nas portas e janelas.

Ela se deteve um instante ouvindo a vibração da janela:

- Este vento não me engana, Caturapota. Este ano não chove mais.

Ele deteve o leve bocejo:

- Bata na boca, Viviane das Dores. Será mais um ano de tormento.

Calaram-se. O silvar do vento lá fora. Ruído no galinheiro. O desejo voltando. A mão, de leve, passou a acariciar o sexo dele. E ele foi despertando, despertando, despertou.

- Agora é a minha vez, Caturapota. Prepare-se.

Montou-se nele. Foi um nunca acabar de gemidos, nas gargantas e nas varas da cama. Então suspiraram, ela desabada sobre ele.

- Foi ótimo, Caturapota. Você é bão. Puxa. Pensei que era a primeira vez.

- O caralho.

Depois pensou, pensou, arriscou:

- Quero a vossa mão em casamento.

Ela sentou-se na cama, olhou-o ternamente:

- Sou vossa.

- Para quando serão as bodas?

Ela olhou as telhas, dedo no queixo:

- No próximo outono, está bem?

- E que tal na primavera?

Ela passou as mãos nos cabelos longos:

- Tanto faz. É tudo uma seca mesmo.

A música do radinho, lá na sala, só então foi percebida.

- Que tal esse conjunto de rock, Caturapota?

Ele se deteve ouvindo os sons estridentes dos metais e o pensamento voou para outros acordes:

- Minha viola está com duas cordas quebradas. Cadê dinheiro para comprar outras?

O estrídulo eletrônico foi se desfazendo e substituído pela informação:

- O preço do dólar...

Ela acariciou-lhe o peito:

- E o dólar, Caturapota?

- Haja saco.

Ela levantou-se, nua e linda, foi à sala, fechou o rádio e o conduziu ao seu lugar aos pés de Nossa Senhora, uma mão tapando o sexo, que o pudor era grande diante da mãe de Deus.

Voltou e vestiu o vestido leve pela cabeça.

- Está tarde, Caturapota. Amanhã tenho um monte de roupa para lavar. E só recebo uma merdinha de dinheiro.

Ele coçou a barba, que lhe espinhava o rosto:

- A gente aqui em baixo comendo bosta e eles lá em cima comendo doce. E se a seca continua...

- Pelo jeito...

Ela ia perdendo o sono, desalentado:

- E o meu roçado, tão bonito...

Ele voltou a sentar-se no cepo, no terreiro enluarado. Ela avivara o lampião e veio aninhar-se ao lado dele. Parecia dia. A lua corria no céu estrelado. Olhavam-na, embevecidos.

- Nem uma nuvem, Caturapota meu noivo.

- Nem uma nuvem, Viviane minha noiva.

Ela prendeu-lhe o rosto com as duas mãos, olhou-o bem nos olhos, um fio de lágrima a correr:

- E o que vai ser das nossas vidas? Até o fio d'água onde lavo as roupas está se acabando. E o socialismo, meu noivo, a nossa velha esperança?

Uma lágrima, igual à dela, saiu do olho dele. Encolheu os ombros:

- Se foi com o vento, Viviane minha noiva. Mas volta.

Um raio de esperança bailou no rosto dela:

- Será?

Ele franziu a testa, alisou o queixo, não disse nada. Voltaram a olhar a lua. Então ela se levantou de repente, entrou na sala, pôs o rádio de pilha no parapeito da janela. Aumentou o volume.

A sonata inundou até muito longe, levada pelo vento. Ele bateu nas coxas:

- Já vou, Viviane das Dores minha noiva. A minha enxada.

Mas não se dispôs a pegá-la. Ela suspirou, um suspiro profundo:

- Vou lhe acompanhar um pouco.

Lembrou-se, segurou-o pelo braço:

- Espere. Volto já.

Foi ao velho baú, tirou dele a peça colorida, voltou, abraçou-se a ele:

- Está um pouco frio. Vamos nos proteger.

Envolveram-se com a bandeira verde e amarela, e foram ladeira abaixo, maltrapilhos e descalços, a enxada no seu silêncio cansado escorada à tapera, o caminho leitoso e serpenteado à frente, o dueto contrapondo-se aos acordes da sonata:

Não há, o gente, ó não,

Luar como este do sertão...

Zecapinto







Zecapinto criava pinto. Criava um pinto, que morreu. Criou outro. Que morreu. E outro ele criou. Morreu. Tantos criava, tantos morriam. Um suceder de pintos criados, mal criados, e um rosário de pintos mortos.

Então pensou, pensou, mão no queixo, e concluiu que em vez de pinto o certo seria criar cabra. Criou a primeira e ela não morreu. Criou a segunda, a terceira, a seqüência numérica transformou se em aprisco. A multiplicação tornou se geométrica quando, por engano, comprou um bode, que cresceu e, crescido, não saía de cima das cabras.

Cabra a dar com pau. Então Zecapinto, que passou a ser chamado de Zecacabra, tomou uma resolução: vendeu todo o lote. Saíram berrando, estrada afora, o bode escanchado em cima de uma delas.

Zecacabra ficou só com seus cismares. Olhava o nascer do sol, o pôr do sol. Lembrou se dos pintos frágeis e chorou. Lembrou se das cabras e voltou a chorar.

Valeu se do amigo Ariosto:

– 0 que faço da vida?

A resposta veio seca e pronta:

– Case se.

Levantou a cabeça, um susto e um espanto:

– Com quem?

– Com uma mulher.

Outro susto e outro espanto:

– Onde vou encontrar?

– Procure.

Zecacabra, que passou a ser conhecido por Zecassó, pôs o apurado da venda das cabras no bolso, fechou a casa e mandou se pelo mundo, uma única pergunta quando avistava uma mulher, quer casar comigo? Sempre uma única resposta, não. Nenhuma mulher o queria. Velha, gorda, alta, baixa, aleijada, barriguda, negra, branca, magra, todas lhe balançavam a cabeça na pronta negativa.

Ficou tão conhecido com o seu pregão que passaram a chamá lo de Zecacasacomigo. E ele sempre alucinado, à procura da outra metade. Chegou a abrir o sorriso de esperança quando viu a bela saia vermelha:

– Quer casar comigo?

A voz áspera veio em reprimenda:

– Me respeite. Sou bispo.

Então Zecacasacomigo desistiu de vez. Voltou para o lar abandonado, roto, cansado, desanimado da vida e de tudo. Abriu a casa, escancarou as janelas, estirou se na rede e dormiu dias e dias.

Acordou com a voz meiga e doce chamando o de muito longe.

Que veio vindo, veio vindo. Quando abriu os olhos viu a beleza de moça ao lado, mão segurando o punho da rede, o colar de pérolas dos dentes abrindo o mais belo sorriso dos últimos tempos.

– Vim para ficar.

A surpresa enorme transformou se em desejo e decisão.

Rapidamente puxou a para a rede. Não perguntou de onde ela veio. Foi todo um dia e uma noite de aí meu Deus, eu morro, quero mais, ais e uis sem fim.

Quando suspiraram, o vento soprava forte e ela o chamou de Zecameu. E ele a chamou de Mulherminha. Só então o cenho franziu:

– De onde você veio?

Ela mal abriu os olhos, como se sonhasse:

– De muito longe.

– Fica mesmo comigo?

– Sou sua.

E dele ficou sendo. Zecameu, mais conhecido por Zecadela, criou alma nova. Plantou e colheu. Assoviava e ria. O jardim enfeitava se de flores, o pomar pejou se de frutos.

Até aquela manhã orvalhada. Zecadela, que ia com disposição ao trabalho, voltou do meio do caminho para beijá la mais uma vez. Encontrou a pronta para sair, dedos ágeis dando retoques na pequena trouxa.

– Vou te deixar, Zecaera.

Como um raio que o fulminasse:

– Zeca o que?

– Zecaera, porque já não és meu.

Sentou se, desarvorado:

– Para onde vais, Mulherminha?

Ela, resoluta, dava ligeiro nó no matulão:

– Vou me embora pra Pasárgada. Lá sou amiga do rei.

E se foi. A perplexidade dele transformou se em ódio:

– Vá! Vá seguir o seu fado, ó mulher!

Desandou, desabou nos calcanhares, como sentindo cólicas, e a explosão de choro levou o ao desespero, mãos trêmulas a correr os cabelos. Assim ficou até escurecer e o vento entrou livre porta adentro.

Levantou se, espantou as sombras com a luz do candeeiro, fechou portas e janelas, sentou se à cabeceira da mesa, olhos neutros no vaso de flores murchas, trocadas diariamente por ela.

Pouco dormiu.

Pela manhã a resolução estava tomada. Barbeou-se, banhou se, vestiu a melhor roupa, e valendo se do velho Ford do velhíssimo vigário da vila foi para a grande cidade. Passeou ao léu no meio do trânsito. Parou frente à vitrina e ficou a admirar os vestidos vaporosos, que cairiam bem no corpo dela. E a viu no reflexo do espelho da vitrina. Rodou nos calcanhares, palpitando.

Era outra, linda como ela. Ali parada, meio riso de simpatia.

Sorriu largo para ela. Ela riu para ele.

– Oi.

A resposta dela ampliava a meiguice:

– Oi.

Aproximou se, ajeitou a gravata, alisou o cabelo. Ela continuava sorrindo, um sorriso tímido que o encantava e lhe tirava as palavras. Pôs a mão no quadril. Desfez a posição. Apoiou se num pé, no outro. Pigarreou. E surpreendeu se com o próprio convite:

– Vamos ao cinema?

A resposta veio no sorriso mais tímido ainda:

– Vamos.

Pegou-a pela mão e ela apertou lhe os dedos. O frenesi desceu lhe pela espinha. Andaram, desviando do povo, algumas quadras. Ele procurava iniciar conversa, desesperadamente.

Quando encontrou as palavras, sofreu de decepção:

– Não chove há quinze dias.

Ela olhava o, media o, rabo do olho. Ele se sentia examinado e sufocava se no paletó e na gravata. O desastre foi maior ainda:

– O Ford do vigário da vila está batendo biela.

Chegasse em casa se esbofetearia. O cinema, ali perto, foi a salvação.

– Cá estamos.

Aliviou se intimamente pelas palavras salvadoras. Comprou os ingressos sem ler o cartaz. Conseguiram, no quase escuro, filme começado, duas poltronas isoladas. Poucas cabeças.

Ele olhava a tela, via as figuras e não via o filme. Passou, muito lentamente, o braço sobre o encosto da cadeira dela e dela sentiu a mão leve pousar lhe na coxa. Disfarçou o extremeção com pigarro alto, seguido de psius de cadeiras diversas. A mão foi subindo e ele, surpresa crescente, petrificava se. A voz dela veio acariciante, hálito morno:

– Meu preço é alto.

Não compreendeu. Encarou a na penumbra e ela o olhava, sorrindo.

– Que preço?

– Pela metida.

– Pelo o quê?

– Depois não vamos meter gostoso? Cobro caro. E você paga o hotel.

E a mão chegava lá. Ela apertou a trouxa encolhida:

– Na cama dou um jeito nele.

Desabou de vez. Escorregou na poltrona. O pensamento, num lance, voou para ela, tão linda, sempre a cuidar do jardim, do pomar, das flores no jarro sobre a mesa.

Soltou sem pensar:

– Você é uma puta.

A mão largou a trouxa, a voz cortou áspera:

– Me respeite, seu veado.

A vontade súbita de chorar levou o a levantar se e sair tropeçando poltronas.

Na rua, desnorteado, olhou e olhou e não encontrou rumo a tomar. A buzina de um carro, seguida do palavrão, encaminhou o à esquina. De lá, pernas bambas, para o jardim da praça.

Esparramou se no banco, uma aflição indefinível a atropelar se em soluços que não vinham.

Aos olhos chegaram imagens do pomar com frutos podres no chão, do jardim em abandono, das flores mortas no vaso.

Mais impulso que decisão, levantou se e tomou o rumo de casa. Paletó no braço, laço frouxo na gravata, sapatos na mão, feria se nos pedregulhos da estrada, sufocava ao sol de espelho. Descansou à sombra da árvore copada. E cochilou.

Despertou ao ouvir muitos pios. Perto da cerca vários pintos em torno da galinha que ciscava. Olhou para os lados, lá se foi de quatro, e mais que ligeiro pegou um deles. E caminhou depressa, paletó entrouxado ao sovaco, sapatos presos aos cadarços pendurados ao ombro, piar aflito do pinto no bolso.

Avistou a casa, sozinha ao escurecer. O vulto passou ao largo, sentido contrário.

– Quem vai lá?

– Zecapinto!

Seguiram se à resposta uma leveza interior e uma santa alegria.

Abriu a porta assoviando, acendeu o candeeiro, jogou longe, pela janela, o vaso com flores murchas. Pôs o pintinho sobre a mesa, e ele mal piava, asfixiado como viera no bolso sacolejante.

Olhou-o cheio de pena e esperança. Pena por saber, pela experiência, que ele não viveira muito. Esperança de que o próximo, que adquiriria logo cedo, sobrevivesse. Do contrário outro viria, e outro, mais outro...

Cruzou os braços sobre a mesa, ouvindo ao longe o piar muito tênue do pintinho, ali próximo à sua cabeça bambeada.

Dormiu feliz.



O orador







Sempre que eu passava por aquela praça lá estava ele, sozinho no palanque, gestos teatrais, falando e falando para a multidão silenciosa. Semelhante aos tantos outros que na cidade, no Estado, no País, em palanques, rádios e televisões, faziam promessas há tantos anos. E anos a fora quantos e quantos continuavam a ouvi-los.

Aquele, porém, persistia, diariamente, sob o sol ou sob a chuva, no surrado terno preto, erguendo os braços para a amplidão, gesticulando, mãos trêmulas, aos que o ouviam à frente, à direita e à esquerda. Uma ampla saia de cabeças. E ampliava a voz, quase aos gritos, aos que passavam ao largo metidos nas suas vidas.

Pelo tipo, pelos gestos, só lhe faltava uma bíblia na mão. E ele não tinha bíblia. Aquela persistência, aquele mesmo público quieto e silencioso, intrigaram-me e me despertaram a curiosidade.

Saí rompendo a multidão para aproximar-me o mais possível:

– Com licença. Com licença.

Vi-me bem próximo daquela figura hipnótica, palavras vibrantes que diferiam dos tantos outros da cidade, do Estado, do País. Fui descobrindo, em meio à chuva de perdigotos, que tudo que lhe saía da boca nada prometia desta vida e da outra. Não falava de Deus nem dos homens. Não se referia à cidade, ao Estado e ao País. Ou ao mundo. Seu olhar fuzilava, inquietava, martirizava, e suas acusações, dedo em riste, queimavam, humilhavam, feriam.

Feriram-me.

Integrei-me à multidão e, guardando o mesmo silêncio de todos, contrito, fiquei a escutá-lo, esquecido do tempo.



Ele







Ele sempre se sentava na mesma cadeira de encosto alto e se balançava, olhando o tempo através da janela. Ele não mudava de roupa, o mesmo terno amarfanhado e sujo. Ele não calçava sapatos, meias furadas e chinelos, embora engravatado. Ele nunca sorria quando contava os cúmulos-nimbos que corriam no céu. Ele não cortava as unhas. Ele só se levantava para fazer suas necessidades. Ele dormia na velha cama, vestido corno estava, mãos cruzadas ao peito, como morto ou como se rezasse. Ele só tomava a sopa chupando muito o caldo da colher, numa sonoridade de doer nos ouvidos e nos ossos. Ele chamava a criadinha, balançava-se na cadeira, e ordenava que ela se despisse. Ele a mandava embora em seguida com um gesto de mão e tédio. Ele pedia o jornal, qualquer jornal, para urna corrida ligeira pelos títulos com os óculos na ponta do nariz e jogava-o depois para o lado. Ele não se escanhoava quando fazia a barba, sentado na cadeira e a criadinha com um espelho na mão. Ele ficava com o rosto pontilhado de espuma. Ele não tomava o remédio que o médico receitara. Ele não cortava os cabelos. Ele roncava, cabeça bambeada, a saliva pingando da boca, quando o tempo ia mal e não se podia abrir a janela. Ele rezava e dizia palavrões. Ele recitava versos e os repetia até ficar rouco. Ele tossia e escarrava no chão. Ele soltava gazes, em seqüências sonoras que alcançavam a vizinhança. Ele resmungava e não dizia palavra. Ele cantarolava surdamente sempre a mesma canção. Ele me olhava com olhar neutro. Ele tossia a noite toda, sujava-se nas calças e não permitia que tocassem nele. Ele infernizava a minha vida e a vida da criadinha. Ele era o nosso pesadelo.

Ele ficou assim depois que ela se foi, entre círios e flores.

Ele então foi despachado para a companhia dela, depois que trocamos, eu e a criadinha, um olhar de cumplicidade.

Ele continuou presente com a sua ausência.

Ele me assusta quando olho para a criadinha. Ele a assusta quando ela olha para mim.

Ele aumentou enormemente a carga de nosso pesadelo.

Ele nos deixou sem remissão.